Antes de mais nada, um breve intróito biográfico:
David Hume, para o padrão comum do mundo filosófico, foi um homem que hoje chamaríamos de "normal". Era obeso e tinha orgulho de sua pança (e celebrava o fato do governo não cobrar impostos sobre gordura), também era o que hoje chamamos de "baladeiro", mas o que prefiro chamar de bon vivant, era frequentador dos salões parisienses, num momento em que Paris era o centro cultural e festivo da Europa. Ademais, pasmem, Hume era um garanhão (!!). A encarnação do anti-arquétipo do filósofo, definitivamente!
A proposta de Hume era estabelecer uma geografia da mente humana, estabelecer no campo das ciências morais o mesmo método eficiente das ciências físicas (na época, a física newtoniana), ciência esta baseada única e exclusivamente na experiência e na observação (Tratado p. 22). Ciência que rejeita a elucubração metafísica e que não formula hipóteses.
Sua primeira tentativa disso se deu no "Tratado da Natureza Humana", livro escrito por Hume em sua juventude, com o intuito de atingir a fama enquanto pensador, contudo, a obra, "natimorta no prelo", não fez sucesso. O que levou o filósofo a escrever suas duas Investigações (uma sobre o entendimento humano e outra sobre os princípios da moral), num estilo ainda mais claro e resumindo as principais ideias do Tratado.
Penso que a filosofia de Hume pode ser compreendida, de forma breve, a partir de três eixos:
Seu EMPIRISMO, CETICISMO (dito "mitigado") e NATURALISMO.
O empirismo é a crença que afirma que o conhecimento é extraído exclusivamente da EXPERIÊNCIA, nossos sentidos, nossa sensação fazem a ponte entre nós e o mundo.
Hume é um empirista no sentido em que diz que não há nada AQUÉM ou ALÉM da experiência, ela é o critério último (e único) que detemos.
É óbvio que este empirismo humeano, que pode muito bem ser chamado de "sensualismo", leva a conclusões céticas em vários campos do conhecimento e difere do empirismo de Berkeley (que propunha, entre outras coisas, um imaterialismo) e de Locke (que conservava traços do pensamento racionalista, como a ideia de que os objetos conservam certos tipos de "poderes").
Para Hume, nossas PERCEPÇÕES se dividem em:
Impressões: aquilo que sentimos imediatamente.
e
Ideias: a cópia feita da impressão que reside na nossa mente.
As primeiras são sempre mais fortes e vivas que as segundas. Toda ideia é, necessariamente cópia de uma impressão (a primeira formulação do chamado "princípio de cópia"). A diferença entre elas é de graus de força e vividez.
Alguém deve inferir: mas e as ideias fictícias, como, por exemplo, a do Pégaso (cavalo alado da mitologia grega)? Ora, as impressões e as ideias se dividem em SIMPLES e COMPOSTAS. Toda ideia simples é cópia de uma impressão simples (princípio de cópia reformulado).
Temos a impressão simples de cavalo e a impressão simples de asas e unimos as duas, mentalmente, formando a ideia composta de Pégaso (cavalo alado).
Isso posto, nosso conhecimento se divide em:
Relações de ideias: verdades intuitivamente conhecidas. Necessárias. Analíticas. Tautológicas.
São exemplos disso: a matemática, as verdades lógicas etc.
Esse tipo de conhecimento não é extraído da experiência, mas é resultado de uma relação entre nossas ideias.
Questões (matters) de fato:
Não tem base lógica. O contrário NÃO é lógicamente contraditório, é logicamente possível e pensável.
Exemplos: o Sol nasce todos os dias (o contrário disso: o Sol não nasce todos os dias), a água, sempre que aquecida, ferve. Uma tacada numa bola de bilhar, que gera um choque contra outra bola, causa o movimento da segunda.
Nossa abordagem diante do conhecimento deve seguir essa divisão, não há nenhum substrato universal (mathesis universalis) que costure unívocamente o conhecimento, ele é bipartido exatamente desta forma.
Até aqui, dissecamos a face EMPIRISTA do filósofo escocês.
Apliquemos o que fora dito até aqui, nas questões tradicionais da metafísica, por exemplo, e entendamos a face cética de Hume.
Quando estudava essa questão na faculdade, para ajudar na compreensão da filosofia de Hume, propus o seguinte experimento mental:
SUPONHAMOS que todo o restante da obra filosófica de Hume tivesse se perdido e nunca tivéssemos lido o restante do Tratado e os Ensaios compreendido os princípios até aqui expostos, afirmo que ainda assim seríamos capazes de inferir o restante daquilo que Hume propora.
Por exemplo, apliquemos até aqui o princípio de cópia à relação de causa e efeito:
Quando observamos que, a água, ao ser aquecida, ferve, sabemos que isso não é uma relação ente ideias, mas uma questão de fato. Primeiro, porque é algo que sabemos a partir da experiência e, em segundo lugar, seu contrário é pensável e possível (a água ser aquecida e não ferver).
Onde está a causa e efeito? Que impressão temos dessa "lei"? Ora, nenhuma, só o que vemos é a água ferver NAQUELE MOMENTO e temos a experiência de observar o aquecimento da água causando a fervura da mesma, mas não temos uma impressão da causa, apenas da chama, da água, da chaleira etc. etc.
Ou seja, por mais que tenhamos a ideia da relação de causa e efeito, não temos a IMPRESSÃO da mesma. Portanto, devemos nos manter cautelosos em relação a ela.
Nenhuma força ou poder (ideias presentes em Locke) de conexão necessária emana, p.ex., do choque de uma bola de bilhar com a outra ou do aquecimento e fervura da água. Não temos nenhuma impressão da ideia de conexão necessária.
Nenhuma força ou poder (ideias presentes em Locke) de conexão necessária emana, p.ex., do choque de uma bola de bilhar com a outra ou do aquecimento e fervura da água. Não temos nenhuma impressão da ideia de conexão necessária.
Não é possível falar da cor da conexão necessária ou do sabor de uma causa porque simplesmente não temos nenhuma impressão delas.
Só o que temos é uma coleção de experiências passadas que indicam que o aquecimento da água causa sua fervura e a experiência atual de tal fato. O que não é suficiente para garantir o caráter peremptório de uma afirmação do tipo "o aquecimento da água causa necessariamente sua fervura".
E se aplicarmos o princípio de cópia às ideias de Deus, alma (eu contínuo no tempo e distinto do restante das coisas, um self), existência contínua e distinta dos corpos, valores morais etc. etc??
Ora, concluíremos que as ideias mais caras à metafísica são falsas, os livros que tratam delas devem ser jogados no fogo.
Temos a ideia de Deus, mas não sua impressão, portanto, ela não sobrevive ao critério do princípio de cópia, tão elementar...
E a ideia de maldade. Se vemos uma ação má, sabemos que ela é má, mas onde está a maldade? Tenho uma impressão dela? Não...
Percebemos, portanto, que o pensamento de Hume acerca do CONHECIMENTO culmina necessariamente num certo "relativismo" ou "subjetivismo" tanto moral como estético. Se lermos os textos de Hume tanto sobre Moral (a segunda Investigação, a segunda parte do Tratado) quanto sobre Estética (seus ensaios estéticos), tal como C.Q.D., observamos uma moral fortemente baseada nas paixões humanas e um certo (com o perdão da grosseria) "subjetivismo" estético.
À guisa de conclusão: portanto, nenhuma das "verdades" metafísicas sobrevivem aos critérios estabelecidos por Hume. Trata-se, consequentemente, de realidades PSICOLÓGICAS (embora muito poderosa) e não lógicas
Dessa forma, conhecemos a face CÉTICA de David Hume. Vejamos então o último eixo do pernsamento do filósofo - o NATURALISMO - e entendamos porque seu ceticismo é "mitigado".
Mas, a partir das conclusões tiradas até aqui, o que nos resta então?? Um ceticismo radical à moda antiga e a impossibilidade da construção de ciência?
Não, porque ainda nos resta o HÁBITO ou COSTUME (custom), gerado pela REGULARIDADE DA NATUREZA.
Embora nada racional, nada lógico nos assegure que o Sol nascerá amanhã, que a água ferverá se aquecida e que a bola de bilhar se moverá de acordo com o choque causado por outra, podemos ACREDITAR nisso e considerar essas hipóteses razoáveis tendo em vista que até então sempre foi assim.
Toda nossa experiência passada, todo nosso hábito/costume com relação a esses eventos indica que as coisas sempre foram assim, e PROVAVELMENTE, sempre serão. embora não hajam garantias peremptórias.
A natureza, e toda nossa (e de todos os homens) coleção de experiências passadas está aí para comprovar que as relações naturais são regulares, a natureza não funciona ora de uma maneira ora de outra, as coisas são atraídas para o centro da Terra (gravidade) agora e sempre foram ao longo de toda a história passada, portanto, podemos projetar SUBJETIVAMENTE isso para o futuro e construir uma ciência como a física, por exemplo.
Portanto, Hume não faz de seu ceticismo uma pedra no sapato da elaboração de conhecimento, pois é um ceticismo "mitigado", é um ceticismo parcial, que abre espaço para uma confiança razoável nas ""coisas"".
Eis então, os três eixos que podem explicar o pensamento de Hume quanto à teoria do conhecimento.
AVISO AOS NAVEGANTES:
Navegantes que me conhecem e que não me conhecem: o propósito do post não foi escrever um paper sobre a epistemologia humeana, mas apenas dar noções básicas e gerais para guairem aulas a serem ministradas para 2ºs anos do ensino médio.
Ainda pretendo fazer alguns acréscimos. Gosto muito de Hume. Sempre me interessei pela sua filosofia da religião e meu interesse por sua estética vem numa crescente nos últimos dois anos.
E se aplicarmos o princípio de cópia às ideias de Deus, alma (eu contínuo no tempo e distinto do restante das coisas, um self), existência contínua e distinta dos corpos, valores morais etc. etc??
Ora, concluíremos que as ideias mais caras à metafísica são falsas, os livros que tratam delas devem ser jogados no fogo.
Temos a ideia de Deus, mas não sua impressão, portanto, ela não sobrevive ao critério do princípio de cópia, tão elementar...
E a ideia de maldade. Se vemos uma ação má, sabemos que ela é má, mas onde está a maldade? Tenho uma impressão dela? Não...
Percebemos, portanto, que o pensamento de Hume acerca do CONHECIMENTO culmina necessariamente num certo "relativismo" ou "subjetivismo" tanto moral como estético. Se lermos os textos de Hume tanto sobre Moral (a segunda Investigação, a segunda parte do Tratado) quanto sobre Estética (seus ensaios estéticos), tal como C.Q.D., observamos uma moral fortemente baseada nas paixões humanas e um certo (com o perdão da grosseria) "subjetivismo" estético.
À guisa de conclusão: portanto, nenhuma das "verdades" metafísicas sobrevivem aos critérios estabelecidos por Hume. Trata-se, consequentemente, de realidades PSICOLÓGICAS (embora muito poderosa) e não lógicas
Dessa forma, conhecemos a face CÉTICA de David Hume. Vejamos então o último eixo do pernsamento do filósofo - o NATURALISMO - e entendamos porque seu ceticismo é "mitigado".
Mas, a partir das conclusões tiradas até aqui, o que nos resta então?? Um ceticismo radical à moda antiga e a impossibilidade da construção de ciência?
Não, porque ainda nos resta o HÁBITO ou COSTUME (custom), gerado pela REGULARIDADE DA NATUREZA.
Embora nada racional, nada lógico nos assegure que o Sol nascerá amanhã, que a água ferverá se aquecida e que a bola de bilhar se moverá de acordo com o choque causado por outra, podemos ACREDITAR nisso e considerar essas hipóteses razoáveis tendo em vista que até então sempre foi assim.
Toda nossa experiência passada, todo nosso hábito/costume com relação a esses eventos indica que as coisas sempre foram assim, e PROVAVELMENTE, sempre serão. embora não hajam garantias peremptórias.
A natureza, e toda nossa (e de todos os homens) coleção de experiências passadas está aí para comprovar que as relações naturais são regulares, a natureza não funciona ora de uma maneira ora de outra, as coisas são atraídas para o centro da Terra (gravidade) agora e sempre foram ao longo de toda a história passada, portanto, podemos projetar SUBJETIVAMENTE isso para o futuro e construir uma ciência como a física, por exemplo.
Portanto, Hume não faz de seu ceticismo uma pedra no sapato da elaboração de conhecimento, pois é um ceticismo "mitigado", é um ceticismo parcial, que abre espaço para uma confiança razoável nas ""coisas"".
Eis então, os três eixos que podem explicar o pensamento de Hume quanto à teoria do conhecimento.
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Navegantes que me conhecem e que não me conhecem: o propósito do post não foi escrever um paper sobre a epistemologia humeana, mas apenas dar noções básicas e gerais para guairem aulas a serem ministradas para 2ºs anos do ensino médio.
Ainda pretendo fazer alguns acréscimos. Gosto muito de Hume. Sempre me interessei pela sua filosofia da religião e meu interesse por sua estética vem numa crescente nos últimos dois anos.
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