
Por André,
Retirado de Literatortura.
Sei que me acusam de soberba, e talvez de
misantropia, e talvez de loucura. Tais acusações (que castigarei no
devido tempo) são irrisórias. É verdade que não saio de casa, mas também
é verdade que as suas portas (cujo número é infinito*)
estão abertas dia e noite aos homens e também aos animais. Que entre
quem quiser. Não encontrará aqui pompas femininas nem o bizarro aparato
dos palácios, mas sim a quietude e a solidão. Por isso mesmo, encontrará
uma casa como não há outra na face da terra. (Mentem os que declaram
existir uma parecida no Egito.) Até meus detratores admitem que não há
um só móvel na casa. Outra afirmação ridícula é que eu, Asterion, seja
um prisioneiro. Repetirei que não há uma porta fechada, acrescentarei
que não existe uma fechadura? Mesmo porque, num entardecer, pisei na
rua; se voltei antes da noite, foi pelo temor que me infundiram
os rostos da plebe, rostos descoloridos e iguais, como a mão aberta. O
sol já se tinha posto mas o desvalido pranto de um menino e as preces
rudes do povo disseram que me haviam reconhecido. O povo orava, fugia,
se prosternava; alguns se encarapitavam na estilóbata do templo das
Tochas, outros juntavam pedras. Algum deles, creio, se ocultou no mar.
Não é em vão que uma rainha foi minha mãe; não posso confundir-me com o
vulgo, ainda que o queira minha modéstia.
O fato é que sou único. Não me interessa o que um
homem possa transmitir a outros homens; como filósofo, penso que nada é
comunicável pela arte da escrita. As enfadonhas e triviais minúcias não
encontram espaço em meu espírito, capacitado para o grande; jamais
guardei a diferença entreuma letra e outra. Certa impaciência generosa
não consentiu que eu aprendesse a ler. às vezes o deploro, porque as
noites e os dias são longos.
Claro que não me faltam distrações. Como o carneiro
que vaiinvestir, corro pelas galerias de pedra até cair no chão,
estonteado. Oculto-me à sombra duma cisterna ou à volta de um corredor e
divirto-me com que me busquem. Há terraços donde me deixo cair, até
ensangüentar-me. A qualquer hora posso fazer que estou dormindo, com os
olhos cerrados e a respiração contida. (às vezes durmo realmente, às
vezes já é outra a cor do dia quando abro os olhos.) Mas, de todos os
brinquedos, o que prefiro é o do outro Asterion. Finjo que ele vem
visitar-me e que eu lhe mostro a casa. Com grandes referências, lhe digo
“Agora voltamos à encruzilhada anterior” ou “Agora desembocamos em
outro pátio” ou “Bem dizia eu que te agradaria este pequeno canal” ou
“Agora vais ver uma cisterna que se encheu de areia” ou “Já vais ver
como o porão se bifurca”. Às vezes me engano e rimo-nos os dois,
amavelmente.
Não tenho pensado apenas nesses brinquedos; tenho
também meditado sobre a casa. Todas as partes da casa existem muitas
vezes, qualquer lugar é outro lugar. Não há uma cisterna, um pátio, um
bebedouro, um pesebre; são catorze (são infinitos) os pesebres,
bebedouros, pátios, cisternas. A casa é do tamanho do mundo; ou melhor, é
o mundo. Todavia, de tanto andar por pátios com uma cisterna e com
poeirentas galerias de pedra cinzenta, alcancei a rua e vi o templo das
Tochas e o mar. Não entendi isso até uma visão noturna me revelar que
também são catorze (infinitos) os mares e os templos. Tudo existe muitas
vezes, catorze vezes, mas duas coisas há no mundo que parecem existir
uma só vez: em cima, o intrincado sol; embaixo, Asterion. Talvez eu
tenha criado as estrelas e o sol e a enorme casa, mas já não me lembro.
A cada nove anos, entram na casa nove homens para que
eu os liberte de todo o mal. Ouço seus passos ou sua voz no fundo das
galerias de pedra e corro alegremente para buscá-los. A cerimônia dura
poucos minutos. Um após outro caem sem que eu ensangüente as mãos. Onde
caíram, ficam, e os cadáveres ajudam a distinguir uma galeria das
outras. Ignoro quem sejam, mas sei que um deles, na hora da morte,
profetizou que um dia vai chegar meu redentor. Desde então a solidão não
me magoa, porque sei que meu redentor vive e que por fim me levantará
do pó. Se meu ouvido alcançasse todos os rumores do mundo, eu perceberia
seus passos. Oxalá me leve para um lugar com menos galerias e menos
portas. Como será meu redentor? — me pergunto. Será um touro, ou um
homem? Será talvez um touro com cara de homem? ou será como eu?
O sol da manhã rebrilhou na espada de bronze, já não restava qualquer vestígio de sangue.
— Acreditarás, Ariadne? — disse Teseu. — O minotauro apenas se defendeu.
******
Nenhum comentário:
Postar um comentário
1. Seja polido;
2. Preze pela ortografia e gramática da sua língua-mãe.