Por Folha de São Paulo,
Millôr Fernandes dizia que um homem pode admitir qualquer fraqueza,
inclusive as de cunho sexual, mas jamais se declara um mau motorista.
Algo semelhante acontece nesta época do ano, em meio à praga
confessional de esperança e tristeza relativa à passagem do tempo:
quantas pessoas falam publicamente que não gostam de viajar?
É uma espécie de interdição, que ganhou força de algumas décadas para
cá. Algo das premências bélicas e econômicas que motivaram a expansão
dos impérios desde sempre, e se intensificaram a partir das navegações
do século 15, desaguou na ideia da viagem como descoberta não apenas
científica e social, mas também como o que modernamente se chama de
autoconhecimento.
Junte-se a isso a noção romântica --e consumista-- de que se deve viver
com intensidade, de que a experiência prática e sensorial é mais
emocionante que a cultura livresca, e tem-se um modelo de conduta. A
exemplo da felicidade, da saúde e da energia para o trabalho, sair de
casa nas férias e fins de semana --e fazer o devido relato-- passou a
ser quase obrigatório.
Só que há vários tipos de viagem, e nem todas gozam do mesmo prestígio. A
vida nômade de um Ryan Bingham, executivo vivido por George Clooney em
"Amor sem Escalas", não chega a ser um modelo simpático. Seus prazeres
mesquinhos com cartões de milhagem, bagagem compacta e sushi de
aeroporto, o que jamais veríamos num livro de Conrad, T.E. Lawrence ou
Bruce Chatwin, não são coisas a compartilhar por aí. Menos ainda sua
incapacidade, outro tabu de nossa era, de ter as também modernamente
chamadas relações afetivas verdadeiras.
Bingham está várias posições abaixo dos exilados, aventureiros e
"flaneurs", mas várias acima do turista. Todo mundo parece estar acima
do turista. O que é um paradoxo: enquanto o consenso público destaca seu
valor no desenvolvimento (nem tão) sustentável, que distribui riqueza
sem prejudicar (tanto) o meio ambiente como o agrobusiness e a
indústria, ninguém esclarecido quer ser associado a essa figura --cujo
modo de vida, definiu David Foster Wallace, é "se impor sobre lugares
que, em todas as formas não econômicas, seriam melhores sem a sua
presença".
Num mundo uniformizado, em que quase todas as experiências são
acessíveis por cartão de crédito, resta saber se estamos tão distantes
desse clichê. Existe autenticidade possível em 30 dias de aventuras
pré-programadas? Para viver a fantasia de pairar acima da manada, basta
apenas não usar boné e meias até o joelho, trocando as fotos da
Disneylândia pela praia sem eletricidade, o show de ingressos esgotados,
o "restaurantezinho"?
Clichês podem ser cristalizações de sabedoria, e nada tenho a priori
contra eles. Como quase todas as pessoas, gosto de conhecer outras
cidades e culturas, e sou tão turista quanto se pode ser. Apenas noto
uma segunda contradição: quando tudo o que se busca é a sensação de
raridade, de que nesses 30 dias viveremos longe dos padrões do resto do
ano, o que talvez seja o grande prazer de viajar, reproduzimos o
comportamento mais competitivo e previsível das esferas social e
profissional.
Ou seja: a cada vez que postamos fotos de paisagens, pratos, drinks e
sorrisos, sugerindo que nossos dias de pausa espiritual vêm sendo tão
surpreendentes e radiantes, trocamos a fruição direta da experiência,
com seu risco de tédio e fracasso, por uma demonstração burocrática de
status. Não há autoconhecimento sem uma dose de introspecção, angústia,
decepção e acaso, e a tarefa de fazer e exibir o oposto é mais familiar
ao trabalho e à autoajuda.
Nesse sentido, e se o critério for mesmo o de originalidade, há
alternativas melhores para as férias. Em seu clássico "Viagem à Roda do
Meu Quarto", Xavier de Maistre mostra que "dilatar a existência" é
possível tanto em terras distantes quanto sobre a própria cama --o
"móvel prazeroso" onde "esquecemos durante metade da vida as tristezas
da outra metade". A questão, saindo ou não de casa, com ou sem
companhia, é o quanto se está disposto a isso.
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