Por Folha de São Paulo,
Existe um livro de Schopenhauer chamado "Como Vencer um Debate sem
Precisar Ter Razão" (ed. Topbooks). Um dos riscos de escrever uma coluna
de jornal hoje, ou de opinar em qualquer instância pública, é o oposto:
ser ignorado, quando não perseguido e açoitado num pelourinho de
grunhidos, relinchos e cacarejos, a despeito da mais cuidadosa
argumentação.
Convencer alguém a mudar de ideia não é algo comum em nosso tempo. Basta
uma semana nas redes sociais para perceber: militantes pró e contra
aborto, descriminação da maconha, eutanásia, cotas, cabras e sobrenomes
Guarani-Kaiowá, a maioria está ali para confirmar certezas prévias ou se
irritar com quem diz o contrário.
Uma radicalização que também nasce do meio: para que os palpites sejam
ouvidos entre tantas vozes, a tendência é que o adjetivo prevaleça sobre
o termo exato, a ênfase sobre a ponderação, as regras generalizantes
sobre as nuances que tiram a graça e o colorido das frases e slogans.
Num cenário assim, não é difícil adotar um tom nostálgico ou
apocalíptico. Talvez se possa lamentar o fim de uma suposta era de ouro
dos debates elevados.
Prefiro seguir achando que a humanidade não mudou tanto: apenas passamos
a ouvir, graças a uma tecnologia muito mais benéfica que perniciosa,
que criou possibilidades infinitas de compartilhamento de informação, as
conversas antes restritas a botecos. É um choque descobrir que amigos
são tão ignorantes, levianos ou idiotas, claro, mas até isso tem seu
lado positivo.
De certa forma, estamos diante de um problema das democracias maduras,
que já superaram -ou deviam ter superado- questões graves referentes à
liberdade de discurso. Ou seja, não estou falando da lei, que proíbe
censura, calúnia, injúria e difamação. Nem da ética, que repele a
desonestidade intelectual sem que seu autor precise ir para a cadeia.
Estou falando é de etiqueta, a "pequena ética" que em sua face menos
elitista propõe tolerar os modos alheios -um caminho para, quem sabe,
prestar atenção ao que eles representam.
Isso porque linguagem e tom -que são maneiras de segurar os talheres num
debate- nem sempre arruínam as ideias por terem aparência tosca. Dá um
pouco de cansaço, por exemplo, quando bikers defendem suas propostas
para o trânsito com tamanha agressividade. Ou quando a pecha de
"fascista", misturada à teoria política da salmonela, aparece na
discussão sobre bisnagas de plástico proibidas em feiras e lanchonetes.
Ainda assim, tudo a favor de ciclovias e meios alternativos de
transporte, e abaixo aqueles saquinhos tristes de ketchup e mostarda.
Num ensaio de 2005, um nome insuspeito quando o tema é a consequência
das palavras -Salman Rushdie, que passou anos escondido por causa de um
livro considerado blasfemo pelo Irã- escreveu: "Na Universidade de
Cambridge, me ensinaram (...) que não se deve ser grosseiro com a pessoa
com quem se discute, mas se pode ser extremamente grosseiro em relação a
tudo que ela pensa". Parece uma citação descabida num texto sobre
etiqueta. Na verdade, é a lembrança de uma regra ideal em debates:
deveria importar o que é dito, e não quem diz. É o que impede um
interlocutor de ser desqualificado por gênero, crença, classe ou etnia.
Forçando um pouco a boa-fé, por que não abstrair também o partido em que
o interlocutor vota, a empresa jornalística onde trabalha, os amigos
que tem? Ou suas deficiências retóricas, sua ingenuidade, sua queda pelo
vitimismo, pelo sentimentalismo, pelo insulto? A distinção total entre
texto e autor é utópica, e o conteúdo de uma ideia pode ser
indistinguível de sua forma, e às vezes tudo se resume mesmo a interesse
ou tolice, mas o esforço para enxergar um pouco além disso é sempre
virtuoso. Pensar com liberdade, o melhor atalho para identificar o lado
certo numa disputa, passa por ouvir e aprender com vozes dissonantes.
Mesmo que o timbre delas seja mais frequente em zoológicos,
penitenciárias e hospícios.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
1. Seja polido;
2. Preze pela ortografia e gramática da sua língua-mãe.