Por Folha de São Paulo,
A freirinha repete: "Tenkió"! Depois começa a rir, mas logo para, quando
leva um cutucão da colega ao lado, também freira. A cena aconteceu de
verdade, na minha frente, faz alguns meses, no aeroporto de Congonhas.
Segundos antes, pelo sistema de som, uma funcionária de companhia aérea
fazia um daqueles anúncios impossíveis de decifrar, supostamente em
inglês: "De néxtchi fláitchi uíu dipartchi fron guêitchi êitchi.
Tenkió."
As freiras eram estrangeiras e, claro, só conseguiram decifrar o
"tenkió", provavelmente uma tentativa de dizer "thank you". Uma delas
não se aguentou e, santa criatura, acabou zombando sem querer do sotaque
dos nativos.
Lembrei desse caso prosaico por causa da renúncia do papa. Como sabemos,
Bento 16 avisou que estava de saída em latim. Na sala de imprensa do
Vaticano, acompanhando por um circuito interno, a repórter Giovanna
Chirri, da agência Ansa, sentiu as pernas tremer. Ela entende latim.
Captou antes de todo mundo a gravidade do que acontecia. Deu a notícia
em primeira mão.
No Twitter, modesta, Giovanna explicou assim seu grande feito: "O latim do papa é muito fácil de entender".
De volta às freiras de Congonhas: se o papa falasse latim como a grande
maioria dos brasileiros fala inglês, o mundo teria demorado muito mais
para saber da renúncia. Talvez ainda não soubesse.
Sei que o tema é delicado, mexe com os brios nacionais. Até provocou uma
confusão recente, quando o produtor musical americano Jack Endino, que
trabalha com artistas do Brasil, reclamou de bandas brasileiras que
insistem em cantar em inglês. "Não dá para entender nada."
No caso do rock, há um agravante. Além do sotaque incompreensível, as
letras normalmente não fazem sentido. São escritas por brasileiros sem
nenhuma familiaridade com o inglês que se fala no dia a dia. Na
estrutura e na gramática, acabam sendo traduções literais, para o
inglês, de frases em português.
Imagine, então, o pobre Jack Endino recebendo fitas demo de grupos
brasileiros que cantam, com sotaque indecifrável, letras compostas em
"portinglês"...
O produtor foi bastante atacado por seu suposto esnobismo. Mas tem
razão. E não se trata de exigir sotaque perfeito, daqueles de locutor da
BBC. Isso, quase nenhum não nativo de língua inglesa tem. A não ser que
tenha recebido educação bilíngue, desde criança, o que só acontece com
uma ínfima elite.
Para citar um exemplo extremo: Paulo Francis, correspondente em Nova
York por tantos anos, falava um inglês erudito, sofisticado, de
altíssimo registro intelectual. Tudo isso com um leve sotaque carioca. O
que, ante seu domínio total da língua de William Faulkner e T.S. Eliot,
não tinha a menor importância.
De novo: ninguém está pedindo que brasileiros falem inglês com sotaque
nota dez. Até porque não precisa --americanos e ingleses estão
acostumados a ouvir sua língua com entonação estrangeira. De Björk a
Antonio Banderas, de Greta Garbo a Arnold Schwarzenegger, de Henry
Kissinger a Albert Einstein, não são poucos os exemplos de não nativos
de sucesso no mundo anglófono das palavras e das ideais.
Já por aqui, é bom lembrar, isso quase não acontece. Ao menor tropeço de
um gringo no português, chiamos e fazemos piada. Ainda um país isolado
do restante do mundo, o Brasil não está acostumado a escutar sua língua
salpicada por um tempero de fora.
Vi uma vez um jornalista americano, residente no Brasil, sendo
entrevistado na TV. O rapaz tropeçava um pouco nos gêneros, errava uma
ou outra concordância nominal, mas se virava bastante bem.
Até que ele tocou onde não podia: disse que, como regra, brasileiros
falam muito mal inglês. O apresentador sapecou: "Já o seu português está
ótimo, né, meu filho?" A plateia veio abaixo, vingando-se da insolência
do gringo.
De pouco valeu ele ter respondido a todas as questões e entendido tudo o
que foi perguntado, mesmo sob a pressão de estar na TV. Tinha sotaque,
cometia um errinho ou outro. Os brazucas não perdoaram.
Resumindo. Se um estrangeiro aparecer por aqui derrapando no português,
mesmo que consiga se comunicar e entenda tudo, vai ser espinafrado sem
perdão. Mas se um gringo se atrever a reclamar do inglês dos
brasileiros, ele que se prepare para nosso contra-ataque chauvinista.
Que as freirinhas de Congonhas nos perdoem.
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