Por jornal O Globo,
O que faz alguém querer ir para a Coreia do Norte?
Curiosidade é parte da resposta
No
começo do ano, antes de decidir ir ao Egito, pensei em ir à Coreia do Norte. Não
é uma viagem impossível: por cerca de US$ 2,5 mil por cinco noites, cerca de
quatro mil turistas carimbam o passaporte em Pyongyang anualmente — desde que
não sejam fotógrafos ou jornalistas. Descobri este detalhe quando tentei marcar
a viagem pela Koryo Tours, agência inglesa sediada em Pequim que é uma das duas
ou três a terem o país no portfólio. A informação consta do formulário de
registro de reserva mas, pelo sim pelo não, escrevi perguntando se não me
deixariam viajar se eu jurasse ficar quietinha e obediente no meu canto. Nick
Bonner, que fundou a Koryo em 1993 com Joshua Green, foi simpático mas firme: a
resposta era não. Se eu conseguisse um visto como jornalista — coisa que ele,
pessoalmente, considerava tricky, que é como se diz complicado em
inglês — teria o maior prazer em me ajudar no que fosse preciso. Como a minha
vontade de conhecer a Coreia do Norte era menor do que a minha falta de
disposição para uma batalha burocrática perdida de antemão, deixei para lá.
Minha família, como sempre, ficou perplexa com a escolha: tantos lugares
bonitos para se ver no mundo! O que é que faz alguém aparentemente normal ter
vontade de ir para a Coreia do Norte? É difícil explicar. Curiosidade é parte da
resposta; outra parte é a vontade de contar uma história nova, de registrar um
pedaço do mundo que relativamente pouca gente conhece. Tenho certeza de que a
Coreia do Norte daria uma ótima série de crônicas. Há poucos lugares no mundo
que valem por viagens no tempo, e ela é certamente um deles: noites escuras,
casas sem luz elétrica, neon zero, consumo zero, trânsito zero, internet nem
pensar. Isso não existe mais em nenhum centro urbano. No interior do interior da
Índia vi um camarada puxando um camelo numa estrada de terra, enquanto falava
pelo celular. No interior do interior do Tibete vi lojinhas vendendo Angry Birds
falsificados e monges calçando tênis Adidas.
Li mais sobre a Coreia do Norte ao longo do ano passado do que havia lido em
todos os outros anos da minha vida juntos. É que, em maio, me caiu em mãos um
livro chamado “Fuga do Campo 14” (Intrínseca, tradução de Maria Luiza Borges),
sobre o qual, aliás, já falei aqui. Escrito por Blaine Harden, repórter do
programa “Frontline”, ele conta a vida de Shin In Geun num dos campos de
prisioneiros do país e a sua fuga para a Coreia do Sul. Shin nasceu no próprio
campo, filho de prisioneiros a quem os guardas permitiram uma espécie fugaz de
matrimônio. Sua primeira lembrança da infância é uma execução, vista quando
tinha quatro anos. Dez anos depois, assistiu à execução da mãe e do irmão, que
ele mesmo delatara. Entre uma e outra, passou por toda a sorte de vicissitudes.
Viu colegas de escola serem mortos por puro capricho dos professores, foi
brutalmente torturado, teve a falange de um dedo decepada quando, sem querer,
deixou uma máquina de costura cair no chão. Shin In Geun não fugiu por desejos
de liberdade, até porque nunca soube o que fosse isso. Fugiu porque não
conseguia parar de pensar no mundo cheio de comida descrito por outro
prisioneiro.
“Fuga do Campo 14” é um livro terrível. Fiquei tão impressionada com o mundo
absurdo que descobri através dele que passei um pente fino pelas livrarias
on-line e mandei vir quase tudo o que encontrei sobre a Coreia do Norte. De todo
o lote, os melhores livros foram “Nothing to envy”, de Barbara Demick, e a
graphic novel “Pyongyang, uma viagem à Coreia do Norte”, de Guy Delisle
(Zarabatana Books).
Atualmente chefe da sucursal chinesa do “Los Angeles Times”, Barbara Demick
foi correspondente na Coreia do Sul durante cinco anos. Escreveu muito sobre a
Coreia do Norte e entrevistou incontáveis dissidentes. Seu livro conta as vidas
de seis habitantes de uma mesma cidade do interior, e é tão bem escrito que, se
não fosse reportagem, seria um ótimo romance. Suas personagens estudam,
trabalham, namoram, casam e constituem família em circunstâncias que
simplesmente não conseguimos conceber. Quando a União Soviética desmoronou, a
Coreia do Norte, que vivia de subsídios de Moscou, foi à lona: estima-se que um
quinto da população tenha morrido de fome. Os entrevistados de Demick contam
como foi atravessar este período; alguns descrevem a morte consecutiva de vários
parentes.
Já o canadense Guy Delisle foi a Pyongyang trabalhar com edição de desenhos
animados, e fez um ótimo diário em quadrinhos do seu bizarro cotidiano no país.
Demos sorte: a produtora que o levou até lá faliu e ele se viu desobrigado das
cláusulas de segredo que havia assinado. “Pyongyang, uma viagem à Coreia do
Norte” é menos revelador, mas não menos assustador do que os outros dois livros.
A diferença é que, com ele, podemos pelo menos dar umas risadas.
Mais engraçada mesmo só a nota que
o PC do B divulgou por ocasião da morte de Kim Jong-Il: “Durante toda a sua vida
de destacado revolucionário, o camarada Kim Jong-Il manteve bem altas as
bandeiras da independência da República Popular Democrática da Coreia, da luta
anti-imperialista, da construção de um Estado e de uma economia prósperos e
socialistas e baseados nos interesses e necessidades das massas populares.”
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