Por Folha,
Vive como um burguês para que possas reservar toda a radicalidade para a
tua arte. Eis o espírito de uma conhecida frase de Flaubert. Haverá
conselho mais sábio para qualquer artista ou candidato a? Duvido. Ele
transporta duas grandes verdades --e uma grande inferência.
Comecemos pelas verdades. Não existe arte, grande arte, sem ordem,
grande ordem. Não falo apenas de um mínimo de ordem pessoal, embora isso
ajude: escreve-se melhor quando não existe a angústia suplementar de
não haver dinheiro para pagar o uísque das crianças.
Mas também se escreve melhor quando não existe a angústia suplementar de podermos ser perseguidos, presos ou mortos. Exceções?
Sempre houve: casos pungentes de criatividade humana no meio do lodaçal. Mas quem deseja ser essa exceção?
Como dizia o estimável Saul Bellow, eu não conheço o Tolstói dos zulus.
Ou o Proust do Sudão. Ofensivo, dizem as brigadas politicamente
corretas. Pena que não apresentem esse Tolstói ou esse Proust. Sem
provas, ofensiva é a inteligência das brigadas.
Os artistas "boêmios", ou pretensamente "boêmios", só marcham contra a
civilização burguesa precisamente porque existe uma. Sem uma civilização
burguesa, o lugar deles era a irrelevância, o anonimato ou coisa pior.
E não existe imagem mais patética do que ver o ódio do artista rebelde
contra o exato mundo burguês (ou capitalista, tanto faz) que sustenta e
promove a sua rebeldia. Flaubert, que nunca morreu de amores por esse
mundo, teve pelo menos a honestidade de expressar a sua ambivalência
perante ele.
Mas a frase de Flaubert transporta uma segunda verdade: é a tua arte que
conta, não a tua vida. É a arte que deve ser julgada, não a tua relação
problemática com o sabão ou com as maneiras.
Anos atrás, lembro-me de um velho professor de estética que me contava,
maravilhado, que a primeira vez que conhecera o grande escritor e
artista português Almada Negreiros, o autor estava sentado no sofá da
sala, assistindo ao noticiário, como qualquer "pater familias" depois de
mais um dia de labuta.
Almada, o modernista Almada, o futurista Almada, que pintou Fernando
Pessoa e deixou "Nome de Guerra", um dos mais primorosos textos do
século 20 lusitano --de pantufas em casa! Quem nunca escreveu de
pantufas, ou de robe, ou até de pijama, não pode saber o que existe de
conforto espiritual no exercício. Recomendo, recomendo.
E recomendo uma inferência suplementar a partir de Flaubert: se não
fores um gênio, não te esforces tanto por parecer um. Os gênios não se
esforçam. Eles são. A essência precede a aparência, não o contrário.
Quando se começa pelo fim, normalmente é porque não há grande coisa no
princípio.
Conheço casos. Gente que acredita que a ausência de um livro
recomendável, de um quadro recomendável ou de um filme recomendável pode
ser compensada com a pose certa de escritor, pintor ou cineasta.
Não pode, meu bem. Quando não existe obra digna desse nome, não é boa
ideia uma pessoa apaixonar-se pelo próprio nome. Até porque há paixões
que podem não ser correspondidas.
É por isso que o destino usual do artista falsamente inusual é um poço
de ressentimentos. Ou, melhor dizendo, a exigência infantil de que o
mundo em volta reconheça o tamanho do seu ego. Risível. Não é o ego que
tem de ser grande. É a obra. Sempre a obra. Só a obra.
Vive como um burguês para que possas reservar toda a radicalidade para a
tua arte. Que o mesmo é dizer: abandona a tua pose no latão de lixo.
Não simules conhecimento que não tens. Aprende com quem sabe. Não
queiras ser "transgressivo" na tua vida. Aprende primeiro a usar os
talheres. E quando quiseres ser "transgressivo", vai lavar os pratos (e
os talheres). Isso passa.
Não esperes que o mundo se curve à tua passagem. És tu que te deves
curvar à passagem do mundo. E antes de abrires a boca para te rires do
que não entendes nem és capaz de fazer --"Woody Allen está a ficar
repetitivo, não?"--, cala a boca, ri de ti próprio e pergunta quando foi
a última vez que fizeste um filme razoavelmente decente. Ou um romance.
Ou um quadro.
E se achares que já fizeste esse filme, ou esse romance, ou esse quadro,
então esquece. Podes ir buscar a tua pose no fundo do latão.
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