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Friecrich Hayek |
Na verdade, Benito, você não foi o primeiro. Os louros pela
promulgação desse princípio em toda a sua atrocidade moderna vão para
V.I. Lênin, que já em 1917 se vangloriava de que, quando terminasse de
construir o seu paraíso dos trabalhadores, “a sociedade inteira se terá
tornado um só escritório e uma só fábrica, com igualdade de trabalho e
igualdade de salários”.
O que quer que Lênin não soubesse acerca da restrição das liberdades
individuais, certamente não valia a pena sabê-lo. Tudo bem, as coisas
não andaram exatamente do modo como ele esperava – ou dizia esperar -,
uma vez que, à medida que a União Soviética avançava aos trancos e
barrancos, havia cada vez menos trabalho e salários cada vez mais
desvalorizados. (Aceita trocar alguns destes dólares por rublos,
camarada?). Na prática, a única igualdade que Lênin e seus herdeiros
conseguiram foi a igualdade na miséria – o empobrecimento para todos,
com exceção de uma minúscula e variável porcentagem da nomenklatura.
Trotsky foi direto ao ponto prático em jogo ao comentar que, quando o
Estado é o único empregador, o velho adágio “quem não trabalha, que não
coma” é substituído por “quem não obedece, que não coma”. Mesmo assim,
os intelectuais ocidentais organizaram uma longa fila para virem, verem e
serem conquistados: quantos escritores, jornalistas, artistas e
ensaístas bien pensants não caíram de amores pela URSS, como Lincoln
Steff ens, que dizia da sua visita de 1921: “Passei pelo futuro, e ele
funciona”!
Evidentemente, não se pode fazer um omelete sem quebrar alguns ovos.
Mas é notável a imensa pilha de cascas de ovos que amontoamos ao longo
do último século. (Além de que sempre há a pergunta constrangedora de Orwell: “E onde é que está
o omelete?”). Já não lembro quem foi o sábio que descreveu a esperança
como o último dos males que restou no fundo da caixa de Pandora; talvez
tenha sido injusto para com a esperança, mas o dito não é de todo
inadequado àquela adamantina “fé em um mundo melhor” que sempre habitou o
coração da empreitada socialista. E venham falar-me de plantas
resistentes a todos os climas! A experiência socialista nunca funcionou
como anunciaram, mas continua sempre a florir no coração humano – ao
menos nas parcelas colonizadas pelos intelectuais, aquela tribo
palpitante que Julien Benda memoravelmente denominou “clercs”, como na expressão “trahison des”. Mas por quê? Que têm os intelectuais que os torna tão prodigamente suscetíveis ao canto de sereia do socialismo?
Em seu último livro, The Fatal Conceit [1]. The Errors of Socialism (“A vaidade fatal. Os erros do socialismo”, 1988), Friedrich Hayek sublinhava com ironia esse paradoxo:
“A vã busca dos intelectuais por uma comunidade verdadeiramente
socialista, que resultou primeiro na idealização de uma seqüência
aparentemente interminável de ‘utopias’ -
União Soviética, depois Cuba, China, Iugoslávia, Vietnam, Tanzânia, Nicarágua – para depois acabar na desilusão com todas elas, deveria ser suficiente para sugerir que há alguma coisa no socialismo que não bate com certos fatos”.
União Soviética, depois Cuba, China, Iugoslávia, Vietnam, Tanzânia, Nicarágua – para depois acabar na desilusão com todas elas, deveria ser suficiente para sugerir que há alguma coisa no socialismo que não bate com certos fatos”.
Deveria, mas não o fez. E o motivo, sugere Hayek, está no tipo
peculiar de racionalismo em que uma certa espécie de intelectuais está
viciada. A sua “vaidade fatal” consiste em crer que, pelo exercício da
razão, a humanidade seria capaz de reformar a sociedade de um modo que
fosse a um só tempo eqüitativo e próspero, ordenado e orientado para a
liberdade política.
Hayek identifica esta ambição já em Rousseau e, antes dele, em
Descartes. Se o homem nasce livre, mas em todo lugar encontra-se
acorrentado – afirmava Rousseau -, por que simplesmente não rompe seus
grilhões, a começar pelo fardo incômodo das restrições sociais
tradicionais? Talvez se possa discutir se Descartes merece ser citado
como réu na ação de paternidade por essa afirmação, mas entendo o que
Hayek quer dizer. Do sonho cartesiano de fazer do homem o “senhor e
dominador da natureza” por meio da ciência e da tecnologia, faltava
apenas um pequeno passo para fazer dele o senhor e o possuidor da segunda
natureza do homem, a sociedade. Tudo o que resistisse a isso na
experiência humana e no mundo tinha de ser tornado líquido e negociável
para poder sequer enveredar por esse caminho! Tudo o que se resumia em
palavras como “bons modos”, “moral”, “costumes”, “tradição”, “tabu” e
“sagrado” foi subitamente posto à venda. Mas é inerente à natureza
embriagadora da vaidade fatal – ao menos, mais uma vez, para os que são
suscetíveis aos seus encantos – que nenhum obstáculo pareça forte o
suficiente para se opor à sedução exercida pelas engenhosas
prestidigitações da humanidade. Segundo o célebre dito de Marx, “tudo o
que é sólido dissolve-se no ar”.
John Maynard Keynes – ele mesmo uma vítima patente da vaidade fatal – resumiu
o metabolismo psicológico desse orgulho na sua descrição de Bertrand Russell e dos seus amigos de Bloomsbury:
o metabolismo psicológico desse orgulho na sua descrição de Bertrand Russell e dos seus amigos de Bloomsbury:
“Bertie, concretamente, sustentava ao mesmo tempo duas opiniões disparatadamente incompatíveis. Afir-
mava que na prática os negócios humanos são conduzidos de um modo absolutamente irracional, mas que o remédio para isso era extremamente simples e acessível, uma vez que tudo o que tínhamos de fazer era conduzi-los de maneira racional”.
mava que na prática os negócios humanos são conduzidos de um modo absolutamente irracional, mas que o remédio para isso era extremamente simples e acessível, uma vez que tudo o que tínhamos de fazer era conduzi-los de maneira racional”.
Que prodígios de prestidigitação existencial não se ocultam nesta
frase “tudo o que tínhamos de fazer”. F. Scott Fitzgerald afirmou certa
vez que o teste para “uma inteligência de primeira categoria” era “a
habilidade de sustentar duas idéias opostas na mente ao mesmo tempo”, e
ainda assim ser capaz de funcionar. A bem da verdade, esta habilidade é
tão comum quanto o pó. Olhe à sua volta.
Friedrich Hayek (ele abandonou o “von” com o qual nascera) era um
esplêndido anatomista desta espécie de desvarios intelectuais ou
intelectualistas. Nascido em uma próspera família de Viena em 1899,
Hayek já havia forjado para si um modesto renome como economista quando
partiu para a Inglaterra e a London School of Economics, em 1931. Ao
longo da década seguinte, publicou meia dúzia de livros técnicos sobre
economia (a título de amostra, Monetary Theory and the Trade Cycle – “A teoria monetarista e o ciclo comercial”). Mas sua vida mudou em 1944, quando The Road to Serfdom (“O caminho da servidão”), publicado primeiro na Inglaterra e alguns meses depois nos Estados Unidos, o catapultou rumo à fama.
O lançamento da nova edição do livro realizada pela Universidade de Chicago [2]
– o segundo volume da série de vinte previstos para as “obras
completas” – é uma boa ocasião para nos lembrarmos tanto da força da
crítica de Hayek quanto da inamovível persistência das atitudes contra
as quais argumentava. É preciso ter coragem, ou algo do gênero, para
declarar que o produto que se oferece é “a Edição Definitiva”.
“Definitivo”, nestas matérias, é um elogio enganoso e fugaz; no entanto,
eu não hesitaria em descrever essa edição como excelente. As linhas
mais longas fazem com que o texto seja levemente mais difícil de ler do
que na bela Edição do Quinquagésimo Aniversário publicada pela mesma
Universidade de Chicago, mas a nova edição corrige uma série de erros
tipográficos e acrescenta um material suplementar útil, incluindo notas
identificando os personagens citados por Hayek.
A história deste livro curto, mas extraordinário – que é menos um tratado de economia do que um cri de coeur
existencial – é bem conhecida. Três editores o recusaram nos Estados
Unidos – um dos analistas chegou a considerá-lo “inadequado para uma
casa de boa reputação” – antes de a Universidade de Chicago, não sem uma
certa hesitação, resolver assumi-lo. Um dos seus analistas, embora
recomendasse a publicação, prevenia que o livro tinha pouca
probabilidade de “atingir um mercado amplo neste país” ou de “mudar a
opinião de muitos leitores”. Na hora H, porém, a Editora da Universidade
de Chicago mal conseguiu atender à demanda. Em poucos meses, tinham
sido impressos 50.000 exemplares. A seguir, o Reader´s Digest publicou uma versão condensada, que levou o livro a mais 600.000 leitores. E, alguns anos mais tarde, uma versão ilustrada da Look aumentou ainda mais o seu alcance.
Traduzido para mais de vinte línguas, O caminho da servidão
transformou um acadêmico aposentado em uma celebridade internacional.
Nos anos seguintes, a influência de Hayek passou por altos e baixos,
mas na ocasião de sua morte, seis semanas antes de seu nonagésimo
terceiro aniversário, em 1992, ele tinha-se tornado finalmente um dos
“queridinhos” do establishment acadêmico. Fora professor na
London School of Economics, na Universidade de Chicago e na Universidade
de Freiburg, e recebera numerosos títulos honoríficos. Em 1974, recebeu
o Prêmio Nobel de Economia – o primeiro economista defensor do livre
mercado a receber esta honra -,
e as suas teorias ajudaram a estabelecer os alicerces intelectuais da revitalização econômica levada a cabo por Margaret Thatcher e Ronald Reagan nos anos 80.
e as suas teorias ajudaram a estabelecer os alicerces intelectuais da revitalização econômica levada a cabo por Margaret Thatcher e Ronald Reagan nos anos 80.
Em um sentido mais profundo, porém, Hayek permaneceu um outsider, às margens do filão principal dos meios intelectuais ou, ao menos, acadêmicos. A mensagem de O caminho da servidão
mostra por quê. O livro tinha dois objetivos: por um lado, era um hino à
liberdade individual; por outro, era um ataque vigoroso ao planejamento
econômico centralizado e à diminuição das liberdades individuais que
este tipo de planejamento impõe.
Na esteira das revoluções de Reagan e Thatcher, pode parecer estranho
descrever um ataque ao planejamento centralizado ou uma defesa da
liberdade individual como obra de um outsider. Na prática,
porém, embora as teorias de Hayek tenham vencido “no campo de batalha”
algumas escaramuças importantes, no mundo da opinião da elite
intelectual as suas idéias são tão discutidas hoje como o eram em 1940.
Ainda hoje, há uma vasta resistência ao principal insight de Hayek: o de que o socialismo é um berçário para o desenvolvimento de políticas totalitárias.
Com
o exemplo da Alemanha Nazista diante dos olhos, Hayek pôde testemunhar
com que naturalidade o socialismo, à medida que dissolve mais e mais a
iniciativa individual para transferi-la para o Estado, se transforma
pouco a pouco em totalitarismo. Uma das principais teses do livro é que a
escalada do fascismo não foi uma reação contra as tendências socialistas dos anos 20, como freqüentemente se afirma, mas, pelo contrário, o resultado
natural dessas tendências. O que tinha começado como a convicção de que
o planejamento, se queria ser “eficiente”, tinha de ser “tirado dos
políticos” e entregue aos especialistas, terminou com a falência da
política e o abraço dado à tirania. “Hitler não precisou destruir a
democracia”, observa; “ele simplesmente tirou partido da decadência da
democracia e, no momento crítico, obteve o apoio de muitos que, embora o
detestassem, nele viam o único homem forte o suficiente para fazer as
coisas acontecerem”.
A Grã-Bretanha, alertava Hayek, já tinha percorrido longo trecho do
caminho que conduz à abdicação socialista. “As conseqüências imprevistas
mas inevitáveis do planejamento socialista”, escreve, “criam um estado
de coisas no qual [...] as forças totalitárias acabam levando a melhor”.
E cita inúmeros ensaístas influentes que advogam frivolamente não
apenas o planejamento econômico em grande escala, mas a rejeição aberta
das liberdades. Em 1932, por exemplo, o influente teórico político
Harold Laski afirmava que não se deve permitir que “a derrota nas urnas”
crie obstáculos para o glorioso progresso do socialismo. Isso de votar
está muito bem – desde que as pessoas votem certo, isto é, na esquerda.
Em 1942, o historiador E.H. Carr afirmava com entusiasmo que “o
resultado desejado por nós só poderá ser conquistado por meio de uma
reorganização deliberada da vida européia, tal como a que foi levada a
cabo por Hitler”. O eminente biólogo e ensaísta C.H. Waddington também
propunha que a sociedade fosse entregue nas mãos dos especialistas,
observando que a liberdade “é um conceito muito problemático para
merecer ser discutido pelos cientistas, em parte porque, em última
análise, eles não estão convencidos de que exista tal coisa”. Sir
Richard Ackland, arquiteto do “movimento Commonwealth“, escreveu com falsa simpatia que a comunidade diz ao indivíduo: “você
não precisa preocupar-se de ganhar o seu sustento”; a “comunidade” como
um todo cuidará disso, determinando como, quando e de que maneira cada
indivíduo será empregado. Além do mais, acrescentava, ela também
providenciará campos de trabalho para os vagabundos, mas não se
preocupe, pois “a comunidade” cuidará de que ali reinem “condições
bastante toleráveis”. Tal como Carr, Ackland achava muito o que admirar
em Hitler, que, segundo dizia, tinha “tropeçado com [...] uma pequena
parte, ou talvez se devesse dizer um aspecto particular, daquilo que em
última análise se exigirá da humanidade”. Isto, diga-se de passagem, foi
escrito em 1941, em um momento em que o mundo estava descobrindo que
seguir Hitler de fato exigia bastante da humanidade.
As duas grandes influências que presidiram à elaboração de O caminho para a servidão
foram Alexis de Tocqueville e Adam Smith. De Tocqueville, Hayek tomou
emprestado tanto o título quanto sua sensibilidade para aquilo que o
pensador francês, em uma célebre passagem de A democracia na América [3],
denominou “despotismo democrático”. Assim como Tocqueville, Hayek via
que nas sociedades burocráticas modernas as ameaças à liberdade
freqüentemente se apresentam disfarçadas de benefícios sociais. Se o
despotismo à antiga tiranizava, o despotismo democrático infantiliza.
“Seria semelhante”, escreve Tocqueville,
“ao poder paterno se, tal como ele, tivesse o escopo de preparar
homens para a maturidade; mas, pelo contrário, busca apenas mantê-los
irrevogavelmente fixados na infância; agrada-lhe que os cidadãos se
divirtam, desde que pensem somente em divertir-se [...]. Trabalha com
gosto pela sua felicidade, mas quer ser o único agente e o árbitro
exclusivo dela; provê segurança para todos, prevê e atende às suas
necessidades, facilita-lhes os prazeres, conduz-lhes os negócios mais
importantes, dirige os seus afãs, regula-lhes as propriedades, divide
para eles as suas heranças; quem sabe não chegará a poupar-lhes
inteiramente o problema de pensar e a dificuldade de viver? [... Esse
poder] estende seus braços sobre a sociedade como um todo; cobre-lhe a
superfície com uma rede de regras pequenas, complicadas, meticulosas e
uniformes, através das quais as cabeças mais originais e as almas mais
vigorosas não conseguem abrir caminho para sobressair da massa; [...]
não tiraniza, mas limita, compromete, enerva, extingue, entontece e, por
fim, reduz cada nação a não ser nada além de um rebanho de animais
tímidos e laboriosos que o governo pastoreia”.
Fazendo eco a Tocqueville, mas indo além dele, Hayek afirmava que os
efeitos mais importantes da tutela abrangente por parte do governo eram
psicológicos, “uma alteração do caráter das pessoas”. Somos as
criaturas, bem como os criadores das instituições nas quais habitamos.
“A questão fundamental”, concluía, “é que os ideais políticos de um povo
e a sua atitude perante a autoridade são tanto o efeito quanto a causa
das instituições políticas sob as quais vive”.
A maior parte de O caminho da servidão é negativa ou
crítica. Pretende expor, descrever e analisar a ameaça socialista à
liberdade. Mas há também um lado positivo na argumentação de Hayek:
pode-se encontrar, diz ele, o caminho que afasta da servidão abraçando aquilo que denominava “a ordem estendida da cooperação” – em outras palavras, o capitalismo. Em A riqueza das nações,
Adam Smith apontava o paradoxo, ou aparente paradoxo, do capitalismo:
quanto mais se deixasse os indivíduos em liberdade para perseguirem seus
próprios fins, mais as suas atividades seriam “conduzidas por uma mão
invisível a promover” fins que auxiliassem o bem comum.
Empreendimentos
privados conduzem a bens públicos: eis a alquimia benéfica do
capitalismo. O insight fundamental de Hayek, ampliando o
pensamento de Smith, é que a ordem espontânea criada e mantida pelas
forças de um mercado competitivo levam a uma prosperidade maior do que a
economia planejada.
O sentimental não é capaz de envolver este dado com a sua mente ou o
seu coração. Não é capaz de entender por que não deveríamos preferir a
“cooperação” (expressão que soa bem) à “competição” (muito mais áspera),
uma vez que em toda competição há perdedores, o que é ruim, e
vencedores, o que pode ser ainda pior. O socialismo é uma versão do
sentimentalismo. Mesmo um observador realista como George Orwell
deixou-se infectar por ele. Em The Road to Wigan Pier (1937),
Orwell argumentava que, uma vez que o mundo, “ao menos em potência, é
imensamente rico”, se o desenvolvêssemos “como deve ser desenvolvido
[...], poderíamos todos viver como príncipes, supondo que o queiramos”.
Deixemos de lado o fato de que ser príncipe implica, ao menos em parte,
que os outros, a imensa maioria dos outros na verdade, não são da realeza…
O socialista, o sentimental, não consegue compreender por que, se as pessoas foram capazes de “gerar um sistema de regras para coordenar seus esforços”, não seriam igualmente capazes de, conscientemente, “projetar
um sistema ainda melhor e mais gratificante”. Central ao ensinamento de
Hayek é o fato indiscutível de que a ingenuidade humana é limitada, de
que a elasticidade da liberdade exige a atuação de forças situadas além
de nosso domínio, e de que, no fim das contas, as ambições do socialismo
são uma expressão da hybris racionalista. Uma ordem espontânea
gerada pelas forças de mercado pode ser tão benéfica à humanidade
quanto você quiser; pode ter uma vida muito longa, e produzir – como de
fato produziu – riquezas enormes que, há apenas algumas gerações, seriam
inimagináveis. Mesmo assim, não é perfeito: os pobres continuam entre
nós, nem todos os problemas sociais foram solucionados. No fim das
contas, porém, aquilo que realmente custa aceitar na ordem espontânea
produzida pelos mercados livres não é a sua imperfeição, mas a sua
espontaneidade: o fato de ser uma criação que não nos pertence.
Transcende a direção consciente da vontade humana e é, portanto, uma
afronta ao orgulho humano.
A veemência com que Hayek condena o socialismo está na proporção direta do que está em jogo. Como explica em The Fatal Conceit,
“a disputa entre a ordem do mercado e o socialismo é nada mais, nada
menos que uma questão de sobrevivência”, porque “seguir a moral
socialista destruiria grande parte da humanidade atual e empobreceria
boa parte do resto”. Temos um aperitivo do que Hayek diz em toda a parte
onde as forças do socialismo triunfam: nesses lugares, tal como a noite
se segue ao dia, segue-se um crescimento da pobreza e uma diminuição
da liberdade individual.
da liberdade individual.
O que intriga é que este fato tenha tido tão pouco efeito sobre as
atitudes dos intelectuais. Nenhum mero desenvolvimento prático, ao que
parece – repitamo-lo até a saciedade – é suficiente para minar os
prazeres do sentimentalismo socialista. Esse distanciamento do mundo
está ligado a outro traço comum nos intelectuais: seu desprezo pelo
dinheiro e pelo mundo do comércio. O intelectual socialista despreza o
“sórdido motivo do lucro” e recomenda o aumento do controle
governamental da economia. Parece-lhe, nota Hayek, que “empregar cem
pessoas é [...] exploração, mas comandar o mesmo número [é] louvável”.
Não é que os intelectuais, como classe, não gostem tanto de ter
dinheiro como todos nós. O que acontece é que olham toda a maquinaria do
comércio como algo distante dos seus mais íntimos desejos, algo
indescritivelmente inferior a eles. Evidentemente, há um certo sentido
em que isto é verdadeiro. Mas muitos intelectuais não conseguem
compreender duas coisas: primeiro, o fato de que o dinheiro, como diz
Hayek, é “um dos maiores instrumentos de liberdade jamais inventados”,
uma vez que abre “um leque inacreditável de opções ao homem pobre – um
leque maior do que aquele que, há não muitas gerações, estava à
disposição dos mais ricos”; segundo, a extensão em que a organização do
comércio afeta a organização de nossas aspirações. Como aponta Hilaire
Belloc em The Servile State, “o controle da produção de riqueza é o controle da própria vida humana”.
A questão realmente assustadora que a maioria dos planejamentos
econômicos levanta não é se somos livres para ir atrás dos nossos fins
mais importantes, mas quem determina quais devem ser estes
“fins mais importantes”. “Quem quer que tenha o controle exclusivo dos
meios”, observa Hayek, “também tem de determinar que fins devem ser
buscados, quais os valores que devem ser preferidos e quais os
desprezados – em uma palavra, aquilo em que os homens devem acreditar e
pelo que devem lutar”. Assim, embora possa “soar nobre dizer, ‘que se
dane a economia, vamos construir um mundo decente’, [...] na verdade é
mera irresponsabilidade”.
No fim das contas, o apelo socialista é um apelo emocional. E como um
dos principais meios de expressão das nossas emoções é a linguagem, as
perversões do socialismo têm seu correlato em uma perversão da
linguagem. “Do mesmo modo que a sabedoria se encontra freqüentemente
escondida sob o sentido das palavras”, nota Hayek, “o mesmo se dá com o
erro”. Em conseqüência, a tarefa de defender a liberdade implica a
tarefa de defender a linguagem.
Ao longo de seu trabalho, Hayek presta considerável atenção à “nossa
linguagem envenenada”, mostrando como a sentimentalidade socialista
distorceu quase a ponto de desfigurá-las palavras básicas como
“liberdade” e “igualdade”. Para além de todo o significado definido que
elas possam comunicar, essas palavras são elogiosas: solicitam
automaticamente o nosso apoio, mesmo que tenham sido recrutadas para
servir a realidades diferentes das coisas que denominavam
originariamente, ou mesmo opostas a elas. Como nota Hayek, a “técnica
mais eficiente” para atingir a transformação semântica almejada é
“utilizar as palavras antigas, mas mudando seu sentido”. A frase
“República do Povo” resume o processo, mas basta ver o que aconteceu com
termos como “liberal”, “justiça” e “social”.
Em The Fatal Conceit, Hayek apresenta uma breve lista de 160
nomes aos quais se adicionou o termo “social”, desde “contabilidade”,
“administração”, “era” e “consciência”, até “pensador”, “utilidade”,
“opiniões”, “desperdício” e “trabalho”. Antigamente, dizia-se que uma
doninha era capaz de esvaziar um ovo sem deixar marcas, e “social” é
neste sentido uma “palavra-doninha”: uma casca fonética com pouco mais
do que um eco de significado. É, escreve Hayek, “freqüentemente usada
como uma exortação, um tipo de palavra-chave da qual a moral
racionalista se vale para deslocar a moral tradicional, e agora suplanta
gradualmente a palavra ‘bom’ como designação daquilo que é moralmente
correto”. Basta pensar na odiosa fórmula “justiça social”: de facto,
passou a significar injustiça, uma vez que atua manipulando o
maquinário legal da justiça a serviço de fins pré-determinados. Os
partidários da “justiça social” desprezam a justiça “meramente formal”;
e, ao fazê-lo, substituem o império da lei – tradicionalmente
representada como cega precisamente porque “não fazia acepção de pessoas” – pelo império de uma (pseudo)-”eqüidade”.
Não surpreende que Hayek tenha sido freqüentemente descrito como
“conservador”. A bem da verdade, ele poderia replicar com razão que sua
posição poderia ser descrita mais adequadamente como “liberal”,
entendendo-se este termo não em sua deformação contemporânea (isto é,
estatizante ou esquerdista), mas no sentido vigente na Inglaterra do
século XIX, segundo o qual Burke, por exemplo, era um liberal. Há um
sentido importante em que os liberais genuínos são (conforme a fórmula
de Russell Kirk) conservadores precisamente por serem liberais:
compreendem que a melhor possibilidade de preservar a liberdade está na
preservação das instituições e práticas tradicionais que, por assim
dizer, abrigaram a liberdade. Embora cauteloso quando se trata de
inovações políticas, Hayek acreditava que o conservadorismo tradicional
dos Torys era excessivamente comprometido com o status quo. Seu liberalismo era, neste sentido, um liberalismo ativista ou experimental.
Esta é uma faceta do pensamento de Hayek que o filósofo Michael
Oakeshott discernia com precisão ao observar que a “principal
importância” de O caminho da servidão não estava na coerência
interna da doutrina de Hayek, mas “no fato de ser uma doutrina”. “Um
plano para resistir a todos os planejamentos talvez seja melhor que os
seus opostos”, prossegue Oakeshott, “mas pertence ao mesmo estilo
político”. Talvez seja assim. Mas o valor inestimável de Hayek consiste
em ter dramatizado a farsa sutil da empreitada socialista. “Raramente a
liberdade, seja de que tipo for, se perde de uma vez”: a frase de Hume
serve de epígrafe a O caminho da servidão. É tão pertinente hoje quanto no tempo em que Hayek a transcreveu em 1944.
Artigo traduzido da revista The New Criterion, vol. 25, n. 9, maio de 2007. Copyright © Roger Kimball, 2007. Todos os direitos desta tradução reservados a Dicta&Contradicta.
Roger Kimball é crítico de arte e editor executivo do The New Criterion Magazine. Publicou, entre outros, os livros The Rape of the Masters: How Political Correctness Sabotages Art (Encounter Books, 2004), The Long March: How the Cultural Revolution of the 1960s Changed America (Encounter Books, 2000) e Tenured Radicals: How Politics Has Corrupted Our Higher Education (HarperCollins, 1990).
Tradução de Marcelo Consentino. O tradutor é Bacharel em Direito
pela PUC-SP, mestre em Filosofia pela Ponteficia Università della Santa
Croce e doutorando em Filosofia da Religião pela PUC-SP; trabalha como
coordenador de políticas institucionais na Associação Casa Azul,
organizadora da FLIP.
organizadora da FLIP.
[1] O termo inglês conceit transita entre os nossos “vaidade” e “arrogância” (n. do. t.).
[2] The Collected Works of F.A. Hayek, vol. II: The Road to Serfdom: Text and Documents – the Definitive Edition, ed. Bruce Caldwel (Chicago: University of Chicago Press), 1994, 283 págs. [Traduzido no Brasil como O caminho da servidão, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1987. N. do t.].
[3] Edição brasileira Alexis de Tocqueville, A democracia na América, 4ª. ed., São Paulo: Martins Fontes, 2005,
2 vols. (n. do t.).
2 vols. (n. do t.).
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