Por Estadão,
A História se encarrega de juntar ideias e fatos, fazer justiça,
costurar acontecimentos e narrar os fatos reais que a política tentou
embaralhar, falsear e, por vezes, negar. Só que as duas - a História e a
política - protagonizam tempos diferentes. Porque trabalha com o
momento presente, a política não tem compromisso com a verdade e se
aproveita do mais oportunista apelo do momento. A História trabalha com
tempo mais longo, seu papel é recolocar em seus lugares ideias e fatos
que a política falseou no passado e contar como se passou a verdade.
Entre o que o Partido dos Trabalhadores (PT) pregou antes e praticou
depois que assumiu o poder, passou pouco mais de uma década. Tempo
curto, do ponto de vista da História, mas a metamorfose foi tão rápida,
flagrante e abrupta que precipitou a percepção da verdade.
O fato mais conhecido desse enredo foi a súbita apropriação da
política macroeconômica de Fernando Henrique Cardoso (excomungada e
rotulada pelo PT de neoliberal) pelo ex-presidente Lula desde o primeiro
dia de seu governo, em 2003. Mas há outros, e vou tratar aqui de três: a
privatização, a autonomia do Banco Central (BC) e o programa Bolsa
Família. Os três foram gerados em ventres liberais, experimentados e
aprovados mundo afora e viraram políticas universais de Estado em países
democráticos.
Começando pelo programa Bolsa Família, que acaba de completar dez
anos e foi comemorado pelo PT, por Lula e Dilma Rousseff com festa
eleitoral. Quem ouve Lula falar imagina que partiram de sua cabeça a
concepção e a criação do programa. E com a sua marca: nunca antes
experimentado no mundo. O senador petista Eduardo Suplicy conhece e
poderia contar ao amigo Lula sobre sua origem e autoria.
Nada nasce de um dia para o outro. A ideia de criar programas de
transferência de renda nasceu nos anos 1960/1970 e seu autor foi o
economista norte-americano Milton Friedman, o mais talentoso formulador
do liberalismo econômico do século passado, criador da teoria
monetarista e responsável pelo ideário liberal dos Chicago Boys -
referência pejorativa da esquerda da época aos alunos seguidores de
Friedman na Universidade de Chicago, onde ele lecionou por 30 anos. A
partir dos anos 80, o Banco Mundial passou a recomendar programas de
transferência de renda aos países pobres e em desenvolvimento, entre
eles o Brasil.
Por aqui, os conselhos do Banco Mundial foram rechaçados pela
esquerda (inclusive o PT), tratados como maldição. "Não se combate
pobreza com esmola", indignavam-se os petistas. Contra essa maré sempre
remou o senador Eduardo Suplicy (PT-SP), que desde os anos 80 defendia
um programa de renda mínima universal - pobres e não pobres - e citava o
liberal Milton Friedman em seus argumentos. Coerente, Suplicy
apresentou o projeto ao Senado em 1991, que foi sancionado por Lula em
2004, mas nunca executado. Também em 1991 o economista da PUC-Rio José
Marcio Camargo escreveu o texto Pobreza e garantia de renda mínima,
apoiando o projeto de Suplicy, mas fechando o foco só nos mais pobres e
acrescentando duas sugestões: excluir os idosos e restringir o acesso às
famílias com crianças matriculadas na escola.
A ideia foi ganhando forma no início dos anos 90, em discussões de um
grupo de economistas do Rio de Janeiro, entre eles Ricardo Paes de
Barros, André Urani, Edward Amadeo e Ricardo Henriques (que no governo
Lula ajudou a formatar o cadastro único), além de Camargo. Curiosamente,
coube a um tucano (o prefeito de Campinas José Roberto Magalhães
Teixeira) e a um petista (o governador de Brasília Cristovam Buarque,
hoje no PDT) a primeira iniciativa - em 1995 - de criar um programa de
transferência de renda no Brasil, que recebeu o nome de Bolsa Escola.
Em alcance nacional, foi o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso
quem primeiro implantou o programa - também com o nome de Bolsa Escola
-, em 1998, focalizando nos mais pobres e criando duas exigências para
as famílias terem acesso: comprovada frequência na escola e carteira de
vacinação atualizada da criança. Na época, o PT foi contra e chamava o
programa de "Bolsa Esmola". Em sua gestão, FHC também criou outros
programas sociais, entre eles o Vale Gás e o Bolsa Alimentação.
O mérito de Lula foi unificar cadastros e concentrar todos os
programas sociais de FHC em um único, que chamou de Bolsa Família. Lula e
o PT não criaram nada e ainda abandonaram o Fome Zero - que conceberam
para concorrer com o Bolsa Escola - e se apropriaram do programa que
combateram em 1998. O mérito maior de Lula, no entanto, foi apostar no
êxito do Bolsa Família como meio para reduzir a pobreza. Nos últimos dez
anos, o número de famílias beneficiadas mais do que dobrou, saltando de
5 milhões, do fim do mandato de FHC, para 13,8 milhões, atualmente. E
ajudou muito a tirar milhões de brasileiros da extrema pobreza e outros
milhões a ascenderem à classe média.
Ao criar agora o Brasil sem Miséria, a meta de Dilma Rousseff é
erradicar a miséria no País. A mesma meta que tinha o ultraliberal
Milton Friedman quando concebeu os programas de transferência de renda
há cinco décadas. É assim a História.
Privatização e BC.
Diferentemente do Bolsa Família, a
adesão de Lula, Dilma e do PT à privatização e à autonomia do Banco
Central é envergonhada e incompleta. Menos ideológico do que Dilma, Lula
respeitou o acordo feito com Henrique Meirelles e lhe deu autonomia de
decisão no BC em seus oito anos de gestão. Mas na semana passada fez
coro ao PT manifestando-se contra a autonomia em lei - ou porque não
quer abrir mão do poder ou porque imagina usar isso como bandeira
eleitoral.
Mais concentradora e ideológica, Dilma deu sucessivas mostras de que
não pretende abrir mão da palavra final em política monetária. E, além
de não ajudar, exagerando nos gastos (o déficit fiscal de setembro
ultrapassou R$ 10 bilhões), deixa para a direção do Banco Central a
solitária e inglória tarefa de controlar a inflação sem liberdade para
manejar suas armas.
Quanto à privatização, os dois resistiram o quanto puderam. Lula por
oportunismo político-eleitoral, Dilma por convicção ideológica. Mas ela
foi obrigada a recuar por motivo simples e pragmático: precisa do
capital privado para estimular crescimento e desenvolvimento.
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