Em O enigma vazio (Rocco, 2008), o
ensaísta e escritor Afonso Romano de Sant`Anna, com coragem, rigor
analítico e farto embasamento teórico, desmascara um dos maiores
embusteiros do séc. 20, o blagueur francês Marcel Duchamp — “artista”
que, valendo-se do desacerto de valores e da involução antropológica do
homem contemporâneo, para utilizar a feliz expressão do filósofo da arte
Ângelo Monteiro, tornou-se uma espécie do guru dos sub-vanguardistas,
dos rebeldes sem causa e da quase totalidade daqueles jovenzinhos
maconheiros e semicultos que infestam os cursos de artes plásticas das
nossas universidades públicas.
Que Duchamp era um picareta em toda
linha não é preciso sequer demonstrar, pois que ele próprio o admite:
“Sou totalmente um pseudo. Esta é a minha característica”(i). Mas
Duchamp não era apenas um pseudo, era sobretudo um sociopata. Assim
sendo, sua obra deveria interessar mais aos psiquiatras que aos
estudiosos da arte— senão o que pensar de um sujeito que expõe sua
chinela suja de sêmen num museu (ii), outorgando-lhe o estatuto de obra
de arte? O que pensar de um “artista” cuja obra mais conhecida e
influente é um urinol de louça, exposto em 1917 num salão da Associação
de Artistas Independentes de Nova York? O que pensar de um iconoclasta
cínico que, admitindo ser um pseudo, contraditoriamente chama um de seus
detratores de “pseudofilósofo”(iii)? Eis o melancólico saldo de uma
época em “que se oficializou que tudo é arte e todos são artistas e
críticos”(iv), e onde, para a felicidade do rei dadaísta e de seus
sequazes, “aboliu-se institucionalmente a norma”(v), para que a única
norma fosse o definitivo sepultamento de todo e qualquer juízo
axiológico, ou, nas palavras do próprio embusteiro, para que “a idéia de
julgamento [em arte] desaparecesse”(vi).
O vigarista francês não era apenas um
zombeteiro blasé; porquanto, como demonstra Afonso Romano de Sant`Anna,
possuía grande interesse pela repercussão de sua obra, tanto assim que
elogiou o ensaio de Octavio Paz sobre “O Grande Vidro”(vii), e chegou
mesmo a viajar a Londres para acompanhar uma conferência do crítico
Arturo Schwartz, que versava sobre essa mesma obra(viii). O curioso é
que Duchamp tinha por objetivo dessacralizar a sua “arte”, mas sempre
ficava bastante satisfeito com os estudos que apontavam nela uma
dimensão sagrada. Era um embusteiro na arte e na vida. Enfim, um
picareta em toda linha.
O que mais espanta, porém, não é a
picaretagem do sub-artista de Blainville-Crevon, que, de modo irônico e
cínico, proclamava-se anti-artista. O que mais espanta é a enorme
repercussão de uma obra que, sob todos os aspectos, conduz o imaginário
humano a patamares inimagináveis de degradação e de indigência
espiritual. Diante de Marcel Duchamp, até mesmo o Encólpio de Petrônio
pode ser considerado um serafim.
O motivo da fascinação de ensaístas
valorosos como Otavio Paz pela obra duchampiana permanece um grande
mistério. Talvez, devido ao declínio do sagrado em nossa época, os
homens — sempre sedentos de grandes enigmas— tenham precisado recorrer a
pseudo-enigmas, a puzzles pueris e a enigmas vazios. É que, como
observa de forma certeira Mircea Eliade, “no fundo, a fascinação (…)
pela incompreensibilidade das obras de arte, trai o desejo de descobrir
um novo sentido, secreto, até então desconhecido do Mundo e da
existência humana. Sonha-se em ser ‘iniciado’, em chegar a compreender o
sentido oculto de todas essas destruições de linguagens artísticas, de
todas essas experiências ‘originais”ix. Evitemos, pois, essas iniciações
e experiências originais, sob pena de, desvirtuando o famoso aforismo
de Protágoras, tornarmos o urinol, e não o homem, a medida de todas as
coisas.
i SANT`ANNA, Afonso Romano de. O Enigma Vazio – Impasses da Arte e da Crítica. Rio de Janeiro: Rocco, 2008, p. 17.
ii idem, ibidem, p. 312.
iii idem, ibidem, p. 39.
iv idem, ibidem, p. 13.
v idem, ibidem, p. 48.
vi idem, ibidem, p. 48.
vii idem, ibidem, p. 32.
viii idem, ibidem, p. 35-36.
ix ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1998.
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