Segue abaixo uma resenha do livro A Nova Ciência Política, de Eric Voegelin, feita por Humberto Serrabranca Campos (Twitter: @1Berto_sc), a quem agradeço pela colaboração.
Resenha: VOEGELIN, Eric. A Nova Ciência da Política. 2ª ed. Brasília: Ed. UnB, 1982. Por Humberto Serrabranca Campos
O filósofo alemão Eric Voegelin não pode
ser resumido em sentenças de fácil apreensão. Isso porque em sua
profícua vida acadêmica, em boa parte transcorrida nos Estados Unidos,
para onde se exilou voluntariamente a partir de 1936, Voegelin refletiu
profundamente sobre temas relacionados à multidisciplinaridade das
ciências humanas – filosofia, história, literatura, ciência política –
com o objetivo de rastrear as origens intelectuais dos fenômenos
ideológicos de massa contemporâneos, como o Fascismo e o Socialismo.
Ambos obliteravam a realidade da experiência social, ao mesmo tempo em
que cegavam espiritualmente grandes contingentes humanos no rastro da
“amnésia” social.
Na presente coletânea de ensaios –
proferidos na Universidade de Chicago em 1951 – justamente no templo
intelectual das doutrinas utilitaristas do liberalismo econômico,
Voegelin procurou recolocar o problema da ciência política para além da
análise de superfície das leis, instituições, sistemas eleitorais e
partidos políticos. Para o filósofo, a metodologia para o estudo destes
temas contemplava tão somente aspectos de um positivismo histórico cujo
objetivo seria a auto-interpretação de mecânicas comportamentais de uma
sociedade. Mas nada falariam a respeito dos “valores” que embasassem a
ação do homem no mundo.
Para preencher esta lacuna, logo na
Introdução percebe-se a séria crítica feita por Voegelin a outro gigante
das Ciências Sociais, Max Weber. Os valores, ideias ordenadoras da
atuação política, passaram a ser tomados em fins de século XIX como
anticientíficos. Ou seja, impossíveis de comprovação pela
experimentação. Ora, se o método positivista não permitia o cotejamento
entre distintos arcabouços valorativos, por conta da impossibilidade
apresentada, então cada teoria recortaria os fatos da experiência de
modo a validar a sua auto-comprovação. Daí o relativismo. Um mesmo fato
poderia ser explicado de formas diferenciadas, mas iguais entre si
quanto ao conteúdo. Mero jogo de versões. Voegelin mostra como Max Weber
reconhecia a existência dos valores, mas considerou-os uma espécie de
“caixa preta” (ênfase minha) em nome da isenção no debate científico.
Weber teria ensinado aos seus alunos por “vias indiretas”, posto que
evitasse discutir sobre os princípios que emergiam de cada teoria. Não
aceitou a tarefa de modificar noções “demoníacas em seus estudantes”,
apelando assim para a “ética da responsabilidade” do governante. A
omissão weberiana produziria consequências nefastas: pressupostos falsos
sobre a realidade poderiam conduzir a ação política em direção à esfera
do totalitarismo por causa de sonhos gloriosos do futuro. Os meios
seriam justificados em função dos fins. O segundo ponto de crítica a
Weber, que o mantinha impassível em relação à discussão dos valores,
tinha a ver com um falso pressuposto: o de que a história seria a
evolução do racionalismo, a partir do qual o ponto presente constitui
marco superior em relação ao passado.
Voegelin reconduz a metafísica ao estudo
da política ao confrontar o racionalismo positivista que limitou a
realidade humana ao campo da imanência. Quem quisesse rebaixar a
política de Platão, Aristóteles e São Tomás ao nível de “valores”,
precisaria provar que as formulações que fizeram não eram científicas.
Quem poderia fazer isso? Ninguém. Por isso que a mera “descrição das
chamadas instituições representativas” não poderiam saciar o interesse
de Voegelin na busca da compreensão de uma ordem. Para tanto, ele
discute a verdadeira razão que permite a uma sociedade política “existir
e atuar na história”: através da natureza da representação. A base da
representação alicerça-se em uma ordem subjetiva e espiritual – cósmica,
divina, humana, mitológica – de que partilham os componentes de uma
sociedade política. Essa, digamos assim, cosmologia intrínseca e
transcendente em relação à realidade e sua autointerpretação, encontram
fronteiras temporais e históricas, formando todo um patrimônio
institucional, cultural e jurídico das mais diversas civilizações. O
significado que o eu dá ao mundo exterior recebe o nome de cosmion,
segundo a tradição aristotélica. Só que as sociedades comunicam-se com a
ordem do cosmion através da simbolização dos ritos, mitos e teorias em
diferentes níveis de “compactação” e “diferenciação”. Ora, quando é que a
representação ganha significado para os governados? Quando os atos
políticos são percebidos pela comunidade como de cumprimento
obrigatório. Com efeito, a atuação do governante para a proteção, a
aplicação da justiça, a manutenção da paz, etc. tem uma correlação
articulada com os símbolos da ordem cósmica partilhados entre a gente
comum.
Sociedades antigas, como a Pérsia,
Mesopotâmia, Egito e até mesmo a Mongol, fundaram a sua representação
política sobre o mito cosmológico. A ordem política era uma expressão de
algum mito de fundação, o qual mantinha a ordem interna pela repulsão
às visões cosmogônicas de outros povos, considerados como “agressores”.
Voegelin
também discute problemas interessantíssimos do processo de passagem do
politeísmo para o Cristianismo em fins do Império Romano, tentando
focalizar os limites teóricos na representação divina dos imperadores
sobre a vida religiosa das fronteiras romanas. Teoricamente, a filosofia
cristã abriu caminho para que, durante o medievo, a ordem histórica
transcendente fosse imanentizada em ciclos históricos visíveis no plano
terreno. Essa ideia germinou-se em Agostinho, sendo mais tarde
desenvolvida por Joaquim de Flora, no séc. XII.
O movimento protestante puritano, do
século XVII, passou a ser identificado como gnóstico quando procurou
determinar o comportamento privado e público dos fiéis em nome de uma
salvação futura, dissolvendo a verdade divina em regras visíveis na
ordem dos fatos.
Ademais, a noção de que as sociedades
humanas caminham para um desfecho determinado pela escatologia imanente
chegou ao pensamento político moderno via Thomas Hobbes, um formidável
intelectual preocupado com a formação de um contrato que garantisse a
estabilidade da ordem política entre governo e os cidadãos. Ainda que
Hobbes não tenha se dedicado ao problema da existência humana na ordem
do ser, suas ideias foram aproveitadas mais tarde pelo Iluminismo. Em
qual sentido? Voegelin discute que a simbologia política ampliou em
diferenciação até alcançar a modernidade liberal e socialista. São
gnósticas na medida em que destronaram Deus como fonte da ordem
transcendente da história e colocaram em suas próprias teorias o
vislumbre de um mundo vindouro – a terra prometida de igualdade,
prosperidade, bem-estar e fim das contradições humanas. Tanto marxismo
como liberalismo rejeitaram as dificuldades do Cristianismo e, no
Gnosticismo, encontraram as raízes teóricas para que se
auto-intitulassem a força política de Deus na História. Ídolos de barro
que, cada qual ao seu modo, lançaram a modernidade nos braços dos
totalitarismos modernos, justificando pela glória futura o horror tanto
dos fornos crematórios nazistas quanto dos gulags soviéticos.
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