“Só a política salva”, diz a deputada do PSOL com a boca na botija[1]. O dinheiro desviado não era para ela, mas para a ação política. E a ação política, sabe-se, é sagrada.
É claro que a senhora Janira
Rocha(foto), a deputada em questão, não tirou isso da sua própria
cabecinha. O caminho percorrido até que essa idéia pudesse ser dita
assim de maneira tão explícita, quase inocente, foi pavimentado por
muitos intelectuais e apóstolos da política como religião. De fato, a
idéia atravessa toda a nossa história contemporânea, desde, pelo menos, o
século XVIII. A fala da deputada confirma a acertada previsão de Ludwig
Feuerbach – que marcaria tragicamente todo o século XX – de que a
política tornar-se-ia a nova religião.
Pretendo, nesse artigo, analisar
brevemente a origem daquela idéia e porque ela teve sempre no
Cristianismo o seu maior obstáculo.
A revolta contra a transcendência não
pode deixar de produzir substitutos. “O homem acredita quer num deus,
quer num ídolo. Não há uma terceira opção!”, dizia Max Scheler (ver O Eterno no Homem, 1921).
A Revolução Francesa parece ter
confirmado a verdade daquele axioma. Ali, de maneira quase caricata,
elementos centrais da doutrina e da missa cristãs foram parodiados e
convertidos em exóticos cultos seculares. Tendo lugar em catedrais como a
Notre Dame, os cultos iam desde batismos e catecismos cívicos até
prostrações penitentes diante da “Santa Igualdade” ou da “deusa Razão”.
Uma nova religião, tendo a razão humana como divindade e os Philosophes como apóstolos, surgia no horizonte como uma aurora de esperança e redenção.
Em O Antigo Regime e a Revolução
(1856), Alexis de Tocqueville já notara o caráter de religião
substitutiva da Revolução Francesa. Segundo ele, ao contrário do padrão
usual de revoluções civis e políticas – que geralmente implicam uma
pátria ou território nos quais se encerram –, a Revolução Francesa não
teve um território próprio e, mais ainda, teve por efeito apagar do mapa
todas as antigas fronteiras. Acima de todas as nacionalidades, ela
formou uma “pátria intelectual comum”, da qual os homens de todas as
nações podiam tornar-se cidadãos. Como escreveu Carl Becker a respeito
dos guias espirituais da Revolução: “Os Philosophes demoliram a Cidade de Deus, de Santo Agostinho, apenas para reconstruí-la com novos materiais.” (A Cidade Celeste dos Filósofos do séc. XVIII, 1932)
Não havia nos anais da história, segundo
Tocqueville, uma única revolução política com as mesmas características
da Revolução Francesa. Estas ter-se-iam observado apenas em revoluções religiosas.
O componente religioso da Revolução ficou ao encargo dos Philosophes,
que desejavam pôr fim à antiga religião francesa (o Catolicismo) ou, ao
menos, “purificá-la” à maneira dos milenaristas medievais. A maior
parte dos Philosophes tinha plena consciência de sua tarefa de
substituir os antigos sacerdotes religiosos na função de conduzir a
humanidade rumo a um “paraíso”, neste caso, terreno. Sendo os
mais novos protagonistas do que Dumézil chamou de “casta sacerdotal” –
correspondendo também ao sentido amplo que Julien Benda conferiu à
palavra “clerc” (clérigo) –, eles passaram a elaborar os
princípios abstratos e os valores transcendentes substitutivos –
“razão”, “igualdade”, “vontade geral” – necessários à instituição
daquilo que Rousseau, em O Contrato Social, chamou de religião civil.
Um dos mais importantes princípios
abstratos do Iluminismo francês foi, certamente, a razão. Este
fetiche iluminista vinha ocupar o lugar da graça cristã na nova doutrina
espiritual. Ninguém menos que Diderot afirmou-o no verbete “Filósofo”
da Enciclopédia: “A razão é, para o filósofo, aquilo que a
graça é para o cristão. A graça impele o cristão a agir, a razão impele
o filósofo.” (Ver, quanto a isso, Os Caminhos para a Modernidade, de Gertrude Himmelfarb).
Mais do que um protesto contra o caráter
opressor e autoritário da instituição clerical francesa da época, a
ojeriza daqueles intelectuais frente ao Cristianismo explica-se melhor,
portanto, por uma questão de rivalidade espiritual e disputa pela alma
dos homens.
No seu livro, Tocqueville comenta que
“dentre as paixões que nasceram daquela Revolução, a primeira a se
acender, e última a se extinguir, foi a paixão irreligiosa.” Essa
“paixão irreligiosa” significava, na prática, um profundo
anticristianismo por parte dos Philosophes. E se, à exceção de
Condorcet, a maioria daqueles intelectuais já havia morrido quando a
Bastilha veio ao chão, a verdade é que suas idéias inspiraram a
violência revolucionária contra membros de igrejas, conventos e
mosteiros franceses. Obras de propaganda anticristã tais como A Religiosa, de Diderot, viriam a provocar um efeito explosivo naquele verão de 1789.
Como mostra Jean Dumont em A Revolução Francesa e os Prodígios do Sacrilégio,
as primeiras manifestações violentas das turbas revolucionárias
voltaram-se inicialmente não contra nobres e aristocratas, mas contra
bispos, arcebispos, padres e freiras.
Os Philosophes não foram
revolucionários políticos. Se ansiavam por algum tipo de revolução, esta
não dizia respeito à estrutura político-social da França do século
XVIII, mas à sua estrutura espiritual. “As revoluções se fazem nos
espíritos antes que nas coisas”, dizia Albert Mathiez, historiador
marxista da Revolução Francesa. A revolução dos Philosophes foi, sem dúvida, uma revolução nos espíritos.
A nova constituição espiritual que viria
a fundar a ordem revolucionária emergente elaborar-se-ia não apenas
contra a Igreja, mas contra as bases constitutivas do Cristianismo. Para
os iluministas franceses, o Cristianismo era nada menos que uma
religião torpe. Mesmo Voltaire – que nunca foi um materialista ateu como
d‘Holbach, Helvétius ou Lamettrie, demonstrando, ao contrário, uma
devoção deísta a uma divindade sobrenatural – mostrou-se extremamente
combativo ao Cristianismo, ainda que, até a década de 1760, ele tenha
atenuado a sua retórica anticristã, ocultando-a sob a aparência de mero
anticlericalismo (Ver o primeiro volume de O Iluminismo: uma interpretação, de Peter Gay).
Foi por aquela época que Voltaire começou a usar o célebre “Écrasez l’Infâme”
["Esmagar a Infame"] como assinatura pessoal, ao final de cartas e
artigos. Tratava-se de um eficaz apelo aos brios dos combatentes da
cruzada anticristã. Por tudo isso, o patriarca de Ferney foi homenageado
por Diderot com o epíteto “sublime, honorável e estimado anticristo”.
A rejeição iluminista ao Cristianismo
resultava de algumas características fundamentais deste último, que
contrariavam fortemente o conteúdo espiritual da religião dos Philosophes. Em primeiro lugar, o Cristianismo é uma religião universalista (no sentido de não respeitar fronteiras socioeconômicas, étnicas ou geográficas), ao contrário da religião dos Philosophes, que era essencialmente elitista (destinada a uma “pequena igreja invisível” de iluminados, como exprimia-se Diderot, e não ao populacho - la canaille).
“Jamais tivemos a pretensão de levar as luzes a sapateiros e
serviçais”, dizia Voltaire. “Este é um trabalho para os apóstolos.”
Em segundo lugar, o Cristianismo é uma religião associal (ou, para muitos iluministas, notadamente Rousseau, antissocial), que transcende o domínio do sócius e da “cidade”, enquanto a religião dos Philosophes era essencialmente civil e social. E, por último, o Cristianismo é uma religião que fala ao indivíduo concreto em sua relação com a Eternidade, ao passo que a religião dos Philosophes era uma religião da espécie, ou do homem abstrato (hipostasiado pelo Philosophe ele próprio) em sua relação com a posteridade. “A
posteridade é, para o filósofo, aquilo que o outro mundo é para o homem
religioso”, escreveu Diderot em carta ao amigo Étienne M. Falconet.
Compreende-se melhor, a esta altura da análise, porque o Cristianismo era um incômodo existencial para a religião civil dos Philosophes. Esta era uma versão moderna das velhas “religiões da cidade” (sensu Santo Agostinho) do mundo pagão, contra as quais o Cristianismo se constituíra (ver o último capítulo de A Cidade Antiga, de Fustel de Coulanges).
Como sugere Arnold Toynbee em A Abordagem de um Historiador à Religião (1956), o Cristianismo nasceu em oposição à auto-adoração do homem, especialmente em sua forma coletiva, o culto ao Estado e à comunidade.
O autor traça uma tipologia universal das religiões humanas segundo o
critério de seus “objetos” de devoção. Haveria, sob essa ótica, três
espécies de religiões: as religiões que adoram a Natureza; as religiões
que adoram o próprio Homem; e, por fim, as “religiões superiores”, que
adoram uma Realidade Absoluta, a qual não se confunde nem com a Natureza
nem com o Homem, mas que está neles e, ao mesmo tempo, além deles. Em
sua forma coletiva, as “religiões do Homem” constituíram-se como cultos a
comunidades “paroquiais”, que, eventualmente, como foi o caso de Atenas
e Roma, tornaram-se comunidades “ecumênicas”. Tais “religiões de
estado”, explica o autor, surgiram em função da necessidade de sanções
sagradas como garantia da ordem pública. Após a desintegração da
República Cristã, o Estado Moderno teria surgido com o espírito da
antiga religião civil pagã.
O Leviatã de Hobbes e a vontade geral de Rousseau são emanações do poder absoluto da coletividade, fonte da moral e da experiência de mysterium tremendum, na clássica expressão de Rudolf Otto (O Sagrado, 1917). São dois princípios constitutivos de nossas “religiões políticas” contemporâneas[2].
O século XX foi o ápice da previsão –
ou, antes, maldição – feuerbachiana, com o surgimento das maiores
religiões políticas da história: o internacional-socialismo e o
nacional-socialismo. Não por acaso, ele foi, até hoje, o mais sangrento
século de nossa história. Quando a política passa a ser compreendida
numa chave soteriológica, os adversários passam a ser vistos como
“impuros”, os opositores como “malignos”, toda restrição ao poder como
“pecado”… E a deputada trambiqueira do PSOL como “mártir”.
[1] Globo Online, 04/09/2013. Link: http://oglobo.globo.com/rio/em-gravacao-janira-rocha-admite-desvio-de-recursos-para-uso-politico-9824266
[2]
Sobre o tema, ver os trabalhos de Waldemar Gurian, Eric Voegelin, Juan
Linz, Wolfgang Hardtwig, Emilio Gentile; e, no Brasil, de Thales de
Azevedo, J. O. Meira Penna e, é claro, O Jardim das Aflições, do professor Olavo de Carvalho.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
1. Seja polido;
2. Preze pela ortografia e gramática da sua língua-mãe.