Movimentos de massa e totalitarismos são fenômenos característicos do século XX. Autores como Ortega y Gasset, Hannah Arendt e Eric Voegelin se propuseram a explica-los a partir de uma comparação entre política e religião. Para o filósofo germano-americano Eric Voegelin a inspiração dos totalitarismos vem de seitas gnósticas.
"Só
a política salva” e “Onde há conflito, é a política que o resolve” são
afirmações feitas por alguns parlamentares brasileiros, mas poderiam muito bem
ter sido proferidas por qualquer líder político totalitário do século XX, pois
revelam uma crença profunda na política como fator determinante no curso das
coisas, tornando aspectos como a cultura, por exemplo, meramente secundários. A
comparação entre política e religião não é trivial. A relação é mais íntima e
estudada do que usualmente se supõe. Diversos autores foram a fundo nessa
relação para explicar a origem dos totalitarismos do século XX, mas também dos chamados
“movimentos de massa” e revoltas populares que são praticamente rotina nas
metrópoles. O comportamento de turbas revolucionárias [2] pode ser estrutural e
filosoficamente equiparado ao das mentalidades apocalípticas e utópicas
tipicamente religiosas, como uma espécie de perversão malévola do cristianismo
(embora a comparação possa ser tecida com a ideia de religião em geral, alguns
autores focaram no cristianismo)? Sim, é o que vão constatar e afirmar alguns
pensadores políticos, particularmente a partir da Revolução Francesa, onde os
paralelos ficam nítidos aos olhos do observador atento. Dos diversos autores
que se debruçaram sobre esse tema, nos serviremos das análises de Ortega y
Gasset (1983-1955), Hannah Arendt (1906-1975) e particularmente Eric Voegelin
(1901-1985); tanto o comportamento das massas quanto a equiparação de
ideologias políticas a religiões é tema caro a esses pensadores pois anteviram
(no caso de Gasset) ou viram (no caso de Arendt e Voegelin) o estrago causado
pelos totalitarismos do século XX – nazismo e comunismo – responsáveis pela
morte de milhões de pessoas.
O
homem-massa
Ortega
y Gasset diagnostica em A Rebelião das
Massas (1926) que nossa época é a época do “homem-massa”. São
características do homem-massa: servir-se dos benefícios da civilização,
toma-los por direito e supor que não são resultado do esforço e criatividade de
homens brilhantes, mas coisas que existiram sempre (o homem massa é “esvaziado
de sua própria história”), age à revelia de qualquer esforço para mantê-los e
também adere a um “politicismo”, nas palavras de Ortega y Gasset: “o
politicismo integral, a absorção de todas as coisas e de todo o homem pelas
política, identifica-se com o fenômeno da rebelião das massas (...). A massa em
rebeldia perdeu toda a capacidade de religião e de conhecimento (...)” [ORTEGA
Y GASSET, 1998, p.26]. Para o homem-massa tudo pode ser reduzido à política,
isto é, resolvido e explicado por meio desta e de nenhum outro meio mais.
Compreender isso é essencial para conseguir conceber o porquê de muitos preferirem
depositar sua fé na salvação na política.
Ortega
y Gasset prossegue sua caracterização do homem-massa ao longo da obra e é
importante que seja ressaltado aqui que ele não se refere a classes sociais,
mas sim ao “homem médio” (ORTEGA Y GASSET, 1998, p. 41), ao homem genérico que
se colocado numa multidão em nada se diferencia dos demais porque não apresenta
nenhuma característica individual que o faça se destacar, a despeito disso,
para Ortega y Gasset, o homem-massa orgulha-se de sua posição e deseja impor
sua “vulgaridade” a todos (Cf. Idem,
p. 45); em vez de ter vontade de tornar-se indivíduo, o homem-massa quer
massificar a todos.
A
conexão entre o conceito de homem-massa de Ortega y Gasset e os movimentos de
massa contemporâneos se dá, particularmente, na contradição entre suas pautas
teóricas e suas ações. O problema assim é colocado: “maltrata e tritura as
instituições onde aqueles direitos são sancionados” (ORTEGA Y GASSET, 1998, p.
48), ou seja, em primeiro lugar, militar pelas bandeiras que usualmente os
movimentos de massa militam só é possível justa e exatamente nos ambientes por
eles rejeitados e, depois, caso fossem atendidas por completo suas pautas, a
própria possibilidade de livre protesto e manifestação seria solapada; Ortega y
Gasset ilustra isso em frase de efeito: “Nos motins que a escassez provoca, as
massas populares costumam procurar pão, e o meio que empregam costuma ser
destruir as padarias” (Idem, p. 75).
A relação entre causas e efeitos das bandeiras dos movimentos de massa é
autofágica.
A
caracterização do homem-massa, do señorito
satisfecho de Ortega y Gasset, é útil para nossa análise do caráter
religioso das ideologias políticas na medida em que as turbas revolucionárias
que compõem os chamados “movimentos de massa” são essencialmente compostos
pelas figuras descritas por Gasset. O filósofo define com precisão o conceito
de revolução como “a vontade de
transformar de súbito tudo e em todos os gêneros” (é ilustrativo disso a
retórica que circundava as propagandas nazista e soviética em torno de um “novo
homem” – a mudança proposta por ambas ideologias é de tal ordem radical que provocará
a insurreição de uma nova espécie de homem) e esse grupo é desejoso de
revolução porque é composto de “massas mimadas [que] são suficientemente pouco
inteligentes para julgarem que essa organização material e social, posta como o
ar à sua disposição, é da mesma origem que elas, já que também não falha,
segundo parece, e é quase tão perfeita como a natural” (ORTEGA Y GASSET, 1998,
p. 75).
Hannah
Arendt sustenta posição muito parecida com a de Ortega y Gasset no que diz
respeito às massas e sua tendência ao politicismo e crença no poder
revolucionário que instaurará as melhorias que todo ser humano supostamente
deseja. Em seu clássico sobre os totalitarismos – As Origens do Totalitarismo (1951), que poderíamos considerar como
o estudo empreendido por Arendt a respeito das “religiões políticas” (ela não
compartilhava da interpretação de Voegelin quanto à gênese dos totalitarismos,
como veremos adiante), ela define a massa sedenta por mudança política radical
da seguinte maneira:
“A atração que o mal e o crime exercem sobre a mentalidade
da ralé não é novidade. Para a ralé, os ‘atos de violência podiam ser
perversos, mas eram sinal de esperteza’. Mas o que é desconcertante no sucesso
do totalitarismo é o verdadeiro altruísmo dos seus adeptos. É compreensível que
as convicções de um nazista ou bolchevista não sejam abaladas por crimes
cometidos contra inimigos do movimento; mas o fato espantoso é que ele não
vacila quando o monstro começa a devorar seus próprios filhos, nem mesmo quando
ele próprio se torna vítima da opressão, quando é incriminado e condenado,
quando é expulso do partido e enviado para um campo de concentração ou de
trabalhos forçados. (...) Mas,
dentro da estrutura organizacional do movimento enquanto ele permanece inteiro,
os membros fanatizados são inatingíveis pela experiência e pelo argumento; a
identificação com o movimento e o conformismo total parecem ter destruído a
própria capacidade de sentir, mesmo que seja algo tão extremo como a tortura ou
o medo da morte” (ARENDT, 2012, p. 435 e 436).
De início, Arendt chama a atenção para o fato que o que
ela chama de “ralé” tende relativizar os males praticados pelos militantes,
considerando-os como mostra de esperteza e isso é feito a despeito de suas, às
vezes, sinceras e boas intenções, ou seja, o companheiro de viagem que aceita a
depredação de bens públicos e privados ou a agressão de autoridades o faz
crendo efetivamente que os fins justificam os meios: pequenos males menores
estão justificados, visto que o resultado final supostamente será benéfico a
todos – qualquer estudioso das revoluções, sendo talvez a Francesa a mais
emblemática, sabe que o emprego do terror em nome do “bem” revolucionário não é
algo de todo inédito, embora o século XX carregue todas as suas peculiaridades.
Ainda, quando o movimento autofágico mostrado por Ortega y Gasset se inicia,
segundo Arendt, a “ralé” prefere sacrificar os fatos no altar da ideologia que
lhe dá substancia para sua ação prática, segundo a filósofa os membros
fanatizados se tornam blindados à evidência e à experiência. O moto de Arendt é
analisar os movimentos de massa, que, segundo a autora, eram o foco dos
totalitarismos: “Nem os julgamentos de Moscou nem a liquidação do grupo de Röhm
teriam sido possíveis se essas massas não tivessem apoiado Stálin e Hitler”
(ARENDT, 2012, p. 435).
Feito este pequeno apanhado da natureza e da estrutura
das massas, o próximo passo é investigar não o como pensam e agem, mas sim o
porquê de existirem, para assinalar com uma resposta nos serviremos de algumas
obras do filósofo germano-americano Eric Voegelin. Enfatizamos que este é um
dos temas mais espinhosos do século XX, e a própria análise do conceito de
homem-massa pode desembocar numa miríade de outros problemas, ao qual o das
religiões políticas é apenas um, que trataremos de maneira introdutória.
A
política como religião
“‘Um
novo céu e uma nova terra: pois o primeiro céu e a primeira terra se foram’”, lemos
no Apocalipse. Eliminem o ‘céu’, mantendo apenas a ‘nova terra’, e terão o segredo
e a receita de todos os sistemas utópicos” Emil Cioran em “História e Utopia”
A ideia de comparar política e religião não é inédita a
Voegelin, embora este tenha investigado a fundo a gênese da relação, aprendendo
até mesmo como ler hieróglifos egípcios para saber como a se dava a relação
político-religiosa dos faraós com seu povo, conforme o próprio relata em Reflexões Autobiográficas (VOEGELIN,
2008, p. 117 e 126) e em As religiões
políticas (VOEGELIN, 2002, p.23-42). Todavia, a imbricação entre política e
religião já havia sido sagrada pela tradição literária, como, por exemplo,
nesta citação de Os Irmãos Karamazov
(1879), de Dostoiévski:
"[...] terias podido então tomar o
gládio de César. Por que repeliste esse derradeiro dom? Seguindo esse terceiro
conselho do poderoso espírito, realizarias tudo quanto os homens procuram na
terra: um senhor diante de quem inclinar-se, um guarda de sua consciência e o
meio de se unirem finalmente na concórdia em uma comunidade de formigueiro,
porque a necessidade da união universal é o terceiro e derradeiro tormento da
raça humana" (DOSTOIÉVSKI, 2001, p. 269).
Aqui, o literato russo explana sobre
o político “ungido” que concretizará as esperanças do povo e fará este
prostrar-se diante dele, assumindo a condição de “guarda da consciência” e
promovendo o “sentimento oceânico” de “comunidade e união universal” que, para
Freud, é característica marcante das religiões.
Max Scheler, em O eterno no Homem (1921) afirma que “O homem acredita quer num
deus, quer num ídolo. Não há terceira opção”. O próprio positivismo comteano,
tão influente (apenas) no Brasil, com suas paródias da fé católica (catecismo
positivista, dias no calendário com homenagens de caráter hagiográfico a
pensadores etc) é evidência nítida da afirmação de Scheler. Ao que tudo indica,
o homem não dirige sua vida com ceticismo por muito tempo, a variação se dá
apenas em termos de qual religião
será praticada e quem será adorado,
se uma religião tradicional e uma divindade transcendente ou uma ideologia
política e seu líder ou o Estado.
Outro que observa a conversão da política
em religião em seu apogeu é Alexis de Tocqueville, particularmente em sua obra O Antigo Regime e a Revolução (1856),
onde o pensador analisa a Revolução Francesa e afirma que ela carrega elementos
que nitidamente caracterizam uma revolução religiosa e não política: a noção de
comunidade universal, pátria intelectual universal etc, mais uma vez o
“sentimento oceânico” e a ideia de dissolução da individualidade concreta em
prol da consciência coletiva abstrata.
Muitos outros documentaram a
tendência de substituição da religião pela política – bem como a conversão de
uma coisa na outra por vias revolucionárias – quando não em forma de paródia
maliciosa do cristianismo (para Tocqueville e outros, no ambiente
pós-revolucionário, os philosophes se
convertem em “clérigos da razão”): Murray Rothbard, em “Karl Marx as religious
eschatologist”, Daniel Chirot e Clark McCauley em “Why not kill them all?”, John
Gray em “Missa Negra” e os clássicos “Marxismo e Religião” de Heraldo Barbuy e “Main
currents of marxism” de Leszek Kolakowski. Gray, aliás, trabalha em seu livro
com a tese de que a política moderna pode ser contada como um capítulo da
história das religiões, o que implica no núcleo da nossa investigação, junto
com Barbuy, ao passo que Chirot, McCauley e Kolakowski passam pela questão de
maneira mais lateral em suas obras e Rothbard aborda o paralelo específico com
o cristianismo.
Eric Voegelin e a questão gnóstica
“Qualquer plano de governo que
pressuponha uma grande reforma nos hábitos da humanidade é com toda evidência
imaginário” David Hume em “A ideia de uma nação perfeita”
Para
Eric Voegelin, a explicação para as religiões políticas – fenômeno
essencialmente moderno cujo ápice se deu no século XX (seria inimaginável, até
mesmo para um tirano medieval, a concentração de tanto poder quanto os líderes
fascistas, nazistas e comunistas concentraram no século passado) – remonta aos
chamados pensadores gnósticos[3]. Para Voegelin, os
totalitarismos do século XX têm inspiração gnóstica. O filósofo afirma que, se
a história moderna for contada como história gnóstica, ela tem início por volta
do século IX, quando o gnosticismo ascendeu com força (Cf. VOEGELIN, 1982, p.
101). A despeito da relativa variedade
de concepções gnósticas, de seu caráter hermético e obtuso, podemos aqui, para
fins didáticos, resumir a crença gnóstica em seus aspectos essenciais.
O gnosticismo
representa uma dissidência da doutrina cristã original e sustenta que o homem
se encontra perdido num universo que lhe é hostil. Embora o quadro universal
seja hostil, os gnósticos (“aqueles que sabem”) clamam deter o conhecimento capaz
de solucionar o quadro, conhecimento este que lhes fora revelado de forma
especial, fazendo dos próprios uma elite auto-proclamada e iluminada,
supostamente capaz de corrigir a situação.
A inferência óbvia
a que chegamos é que, para os gnósticos, o paraíso não é um momento para fora
da história humana, que transcende espaço e tempo, mas que pode ser
concretizado nesta vida, em algum ponto da nossa História, desde que os homens
certos conduzam os demais a isso. O caráter revolucionário do ponto de vista
gnóstico é patente: o paraíso pode ser alcançado por mudanças radicais
praticadas na ordem da nossa realidade. Em uma de suas obras clássicas,
“Science, Politics and Gnosticism”, Voegelin elenca as seis características
definidoras do gnosticismo:
(1) Está
insatisfeito com sua situação atual.
(2) Os
problemas do mundo se devem a sua organização ruim.
(3) A
salvação desse mundo mal organizado é possível.
(4) De
(3) segue que a ordem do ser terá de ser alterada num processo histórico. De um
mundo malévolo um outro bom deve emergir.
(5) Uma
mudança na ordem do ser é possível no reino da ação humana, este ato de
salvação é possível por meio do esforço humano.
(6) O
conhecimento (gnose) da alteração da ordem do ser é a preocupação central do
gnóstico, ele é capaz de elaborar a fórmula capaz de salvar o homem e o mundo
(Cf. HENNINGSEN, 1984, p. 297-8).
Do
ponto 4 depreendemos que, entre a doutrina gnóstica e a doutrina cristã
ortodoxa, há um conflito insolúvel: para um cristão ortodoxo de inspiração
agostiniana a salvação vem apenas por meio da graça divina após a morte, este
mundo é passageiro e a salvação fica estritamente reservada para um momento
posterior a esta vida e mundo, ao passo que para o gnóstico a salvação é terrena.
Essa
longa marcha gnóstica converteu-se, deslocada do terreno religioso e
supersticioso para o terreno da política, nos totalitarismos sanguinários do
século XX. Bolcheviques e nazistas estavam extremamente insatisfeitos com sua
situação (lembramos aqui que o próprio Voegelin afirma que essa característica
não é exclusiva de gnósticos – para compreender o movimento é preciso levar as
6 características em consideração), o mundo era ruim porque estava mal
organizado (com as raças erradas no comando, com as classes erradas no comando
etc.), a salvação desse mundo é possível por meio do implante do
nacional-socialismo, que povoará o mundo com uma raça pura e superior ou por
meio do internacional-socialismo ou do comunismo, que promoverá uma sociedade
desprovida de classes, cabendo aos líderes humanos dessas ideologias promover,
dentro da História, as revoluções necessárias para a instauração da ordem
adequada para a vivência do homem no mundo.
Os
gnósticos, portanto, criam numa mudança radical na ordem da realidade,
promovida por mãos humanas e que levaria o mundo a uma condição paradisíaca.
Quando essa fé transita de eixo e afeta a política, surgem ideologias,
pensadores e massas que promovem revoluções radicais como forma de atingir o
“mundo melhor” e perfeito, mas também para os praticantes da fé política, a mudança que conduzirá a
condições paradisíacas não vem com pequenas reformas isoladas e correções
humildes na ordem da realidade, mas sim com uma mudança tão radical que levará
até mesmo ao surgimento de uma nova espécie humana (tanto nazismo, que visava o
paraíso terreno por meio de um banho de sangue étnico, quanto o bolchevismo,
prometiam um novo homem – fosse o homem ariano ou o “homo sovieticus” – para
Trótski, é válido lembrar, todo “homem comunista” teria o calibre intelectual
de um Goethe, de um Aristóteles ou de um Marx). Este tipo de fé foi batizada
por Eric Voegelin de “fé metastática”.
Embora a fé metastática guarde
relação com a fé de tipo religiosa, esta primeira é bastante diferente da
segunda, que é mais modesta em suas pretensões. A fé metastática é a crença de
que todo o plano do real pode ser alterado e, desde que de maneira controlada,
é possível obter uma ordem perfeita como resultado. Voegelin aborda esse tema
no volume primeiro de seu “Ordem e História”: “do problema metastático (...)
verá imediatamente que a concepção profética de uma mudança na constituição do
ser está na base de nossas crenças contemporâneas na perfeição da sociedade,
seja mediante o progresso ou uma revolução comunista” (VOEGELIN, 2009, p. 31) e
segundo Voegelin, esta fé metastática é “uma das grandes fontes de desordem, se
não a principal, no mundo contemporâneo” (ibidem).
Filosofia da História
Nessa
discussão está implícito um dilema entre concepções de História. Desde Santo
Agostinho, particularmente em seu “A Cidade de Deus”, a História era
compreendida em dois eixos: a história humana, “cidade dos homens”, do
desenrolar-se de todos os conflitos sociais, políticos e econômicos, guerras,
ascensão e queda de impérios etc e a história espiritual do homem, “Cidade de
Deus”, única com sentido objetivo e unidade, ordenada pela Criação, Redenção,
Salvação e Juízo Final, sendo que este último ocorre para além deste tempo e
totalmente desligado da história da Cidade dos Homens; pela ocasião do Juízo
Final averígua-se a história da alma individual. Esta foi a concepção de tempo
histórico que predominou até o período oficialmente tido como “modernidade” –
onde então filosofias da história imanentistas começaram a pipocar com
pensadores como Kant, Vico, Comte, Hegel e outros, que criam num momentum a-histórico dentro da História
que põe fim a ela própria. Já a visão de Agostinho encontra eco nas concepções
de história de pensadores como o próprio Voegelin, o alemão Oswald Spengler
(1880-1936) e o britânico Christopher Dawson (1889-1970).
Enquanto para Agostinho este mundo, esta vida e esta História
estão, no limite, fadados à imperfeição, outros pensadores afirmam o contrário,
sendo que a perfeição é alcançável e realizável em algum ponto do futuro da
nossa linha do tempo histórica; o que faz eco na concepção revolucionária de
alguns e serve de moto perpétuo para a promoção de revoluções, mesmo que
alimentadas pelo terror e causadoras de derramamento do sangue alheio. A lógica
que deriva deste raciocínio é: se o paraíso foi deslocado para o eixo terreno,
ou seja, pode ser considerado o télos
da ação histórica, é lícito e conveniente lançar mão de quaisquer meios para
atingir tal paraíso terrestre, desde solapar as bases da civilização e desmanchar
instituições até destruir patrimônio público e privado, agredir autoridades e,
eventualmente, assassinar todos aqueles que se opuserem ao advento do paraíso
na Terra – certa vez, George Orwell fora replicado sobre o caráter sangrento da
revolução bolchevique com o ditado “para fazer uma omelete é preciso quebrar os
ovos”, ao que respondeu “mas a omelete nunca vem!”.
Essa
mudança de senso histórico também origina-se a partir de distorções
doutrinárias, com uma série de seitas cristãs milenaristas (Cf. GRAY, 2009, p.
41), que surgiram aos montes com a Reforma e que interpretavam o retorno de
Jesus como algo que ocorreria num futuro próximo, que o Apocalipse se
aproximava, que revelações haviam sido feitas aos membros dessas seitas e estes
estavam autorizados a praticar insanidades em nome do cultivo terrestre da
Cidade de Deus, antes de responsabilidade exclusiva da Igreja Católica, que se
limitava apenas a preparar as almas humanas para essa condição futura e post mortem. Um exemplo retumbante dessa
situação descrita, provocada pela subversão do senso histórico comum, é a
Revolta dos Camponeses liderada por Thomas Müntzer, teólogo e pastor profético
protestante que liderou a revolta e ocasionou cerca de cem mil mortes com ela (ibidem).
Dessa
maneira, podermos afirmar que sem a inspiração cristã de uma salvação humana
operada por humanos, as religiões políticas modernas não teriam surgido, ao
menos não com a forma com que se desenvolveram. Torna-se evidente também, mesmo
quando despercebido, o caráter gnóstico e místico de todas as doutrinas
revolucionárias movidas por massas delirantes e crentes que representam a
salvação da humanidade (quando não da própria realidade). Ou como afirma John
Gray: “A utilização de métodos desumanos para alcançar fins impossíveis é a
essência do utopismo revolucionário” (GRAY, 2009, p. 35).
Considerações finais
O tema das religiões políticas é transversal às obras de
Eric Voegelin, que são longas e, embora não sejam herméticas no que concerne à
exposição, convém que a leitura seja acompanhada por outros livros,
especialmente clássicos da literatura religiosa e filosófica (Bíblia, Platão,
Aristóteles, Hegel etc), o que demanda tempo, cuidado e poliglotismo (do qual
Voegelin possuía até mesmo para hieróglifos egípcios); ademais, o tema é
demasiadamente amplo e foi abordado aqui em caráter propedêutico, contando com
referências bibliográficas razoáveis. O que deve ser reiterado é que a fé na
política, em ideologias que prometem o paraíso terreno e acabam por instaurar o
oposto, em ações políticas redentoras, materializadas na forma de manifestações
promovidas por massas ou multidões que finalmente trarão a bonança social
desejável para sete bilhões de pessoas ou até mesmo em ídolos políticos, caso
lembremos que todo totalitarismo sobreviveu também graças a um fortíssimo culto
à personalidade do líder; tudo isso é, na menor das hipóteses, condição
explicativa necessária para quem pretende compreender por que o século XX foi
dos mais sangrentos da história. Em suma: a exortação bíblica para que se
mantenha a distinção entre aquilo que é de César e aquilo que é de Deus não foi
cumprida e gerou uma versão deturpada da fé, do sentimento religioso e uma vida
espiritual instrumentalizada (no contexto abordado, qualquer ação passa a ter
sentido apenas à luz do final apocalíptico da ordem vigente, particularmente no
que diz respeito à esfera da moralidade – ou seja, os fins passam a justificar
os meios). Para fins prescritivos, vale a recomendação do filósofo americano
Russell Kirk: "Os homens não vão melhorar o
mundo ateando fogo nele. É preciso que busquem suas antigas virtudes e as
tragam de volta à luz."
Referências
Bibliográficas
ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012.
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Compreender: formação, exílio e
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BARBUY, Heraldo. Marxismo e Religião. São Paulo:
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CHIROT, Daniel; MCCAULEY, Clark. Why not kill them all? Princeton: Princeton
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Coleção Os Pensadores. Jefferson, Os Federalistas, Paine e
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DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Irmãos Karamazov. Rio de Janeiro:
Ediouro, 2001.
GRAY, John. Missa Negra. São Paulo: Record, 2009.
HENNINGSEN, Manfred. The Collected Work of Eric Voegelin, vol. V. Missouri: University
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KOLAKOWSKI, Leszek. Main Currents of Marxism. 3 volumes. Oxford: Clarendon Press, 1978.
ORTEGA Y GASSET, José. A
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ROTHBARD, Murray. “Karl
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von Mises Institute. Disponível em: http://mises.org/daily/3769.
Acesso em: 05/09/2014.
VOEGELIN, Eric. As religiões políticas. Lisboa: Vega,
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WEBB, Eugene. Filósofos da Consciência. São Paulo: É
Realizações, 2013.
[1] André Assi Barreto é bacharel em Filosofia pela Universidade São Judas Tadeu (USJT), mestrando em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), professor das redes pública e particular de São Paulo e assessor editorial da Linotipo Digital. andreassibarreto@protonmail.ch
[2] Enfatizamos aqui que usamos a palavra revolução em sentido técnico e estrito como mudança radical, ampla e total da realidade, da ordem e do ser humano. Nesse sentido, a Revolução Francesa é exemplar enquanto ilustração do conceito, ao passo que, por exemplo, a Revolução Americana não mereceria a alcunha.
[3] Nesse ponto há divergência entre Voegelin e Arendt. Cf. “Uma réplica a Eric Voegelin” (In: ARENDT, 2008, p. 417-424).
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