Tradução: André Assi Barreto
Existem dois argumentos
principais, um de ordem filosófica e outro de ordem prática, para a legalização
das drogas cujo consumo é atualmente proibido. Lidarei com o primeiro aqui e
com o outro em texto distinto.
A defesa filosófica para a
legalização das drogas deriva da famosa passagem de John Stuart Mill em seu Sobre a Liberdade (1859), que é
provavelmente (no mundo moderno) a mais influente de toda a filosofia política.
Mill disse, para parafraseá-lo, que o indivíduo é soberano sobre si próprio,
portanto, nenhuma autoridade e ninguém possui o direito de dizer o que ele pode
fazer acerca de tais questões que dizem respeito a ele, ou principalmente,
sobre ele.
Posso fazer o que me aprouver e
consumir o que gostar, desde que não cause danos a outrem.
Qualquer um pode se mostrar
simpático a essa tentativa de demarcar as relações entre o indivíduo e o estado
ou outras autoridades poderosas. Todo governo hoje é, na prática, vastamente
mais opressor que aquele de George III nas colônias americanas. Quem de nós não
sente o peso crescente da regulação, proibição e compulsão que vem de cima – a
maior parte dela nos dias de hoje supostamente para o nosso bem – para nos
ajudar a ter uma vida melhor ou mais longa, quer queiramos ou não? Como vamos
repelir a avalanche de intromissão oficial nas nossas vidas sem um princípio
que distinga a intromissão legítima da ilegítima?
Tal postura assume que a política
é, e não poderia ser de outro jeito, a aplicação, em qualquer situação, de
alguns axiomas básicos inquestionáveis, como se esta fosse um tipo de geometria
euclidiana. Tenho observado o mesmo impulso – o que poderia ser chamado de
desejo por pureza filosófica – na ética médica. O princípio da autonomia do
paciente força o próprio a escolher entre alternativas quando tudo que ele
deseja é que uma autoridade lhe diga o que fazer, o que, afinal de contas, é o
motivo que ele inicialmente foi ao médico. Nem todos veem, ou querem ver, a
totalidade da vida como um extenso e vasto supermercado em que tudo, do mais
sério ao mais trivial é, compulsoriamente, uma questão de escolha pessoal.
Escolher é importante, mas não importante em absoluto, como pode atestar
qualquer um que já tenha tomado alguma escolha insignificante.
Há momentos em que a ausência de
escolha pode ser um alívio. Insistir que uma pessoa escolha quando ela não quer
fazê-lo (porque escolher é doloroso para ela) é uma forma de sadismo.
Ademais, o mero desejo por um
princípio simples (e o próprio Mill se orgulhava que seu princípio era simples,
inclusive, muito simples) que pode servir como papel de tornassol para
distinguir entre o permitido e o não-permitido não quer dizer que ele exista.
Nosso desejo que algo exista não traz a coisa desejada à existência. Pode ser o
caso que o mundo seja irremediavelmente caótico, não apenas fisicamente, mas
também eticamente.
As objeções à premissa de Mill em
favor da legalização das drogas são bastante conhecidas. O homem é um animal
tanto político quanto social e exceto para aqueles poucos que vivem em
isolamento genuíno, quase tudo que fazemos afeta outras pessoas. Evidentemente,
o grau que as ações de alguém afetam os outros varia; mas o fato é que esse
grau é um continuum e não categorial
e isso significa que a autoridade para interferir, proibir ou controlar é uma
questão de julgamento. Tal autoridade não pode ser exercida à luz de um
princípio simples. O fato de as vezes julgarmos algo como certo e outras vezes
não, não significa que, para interferir nas ações de um homem, tenhamos ou
devamos ter em nossas mentes uma linha demarcatória abstrata estabelecida com
clareza.
Podemos, na verdade, devemos ter
um viés ou uma predisposição favorável à liberdade individual e também devemos
ter uma apreciação vívida do fato que, interferir na liberdade para prevenir
que outros se machuquem pode mais causar que prevenir dano. Ademais, visto que
a liberdade é boa em si mesma, a perda dela é um mal em si mesmo, algo que deve
ser sempre levado em conta.
Nada disso significa que existe
um princípio claro que defina previamente os limites da liberdade tal como Mill
deseja (e que os pretensos legalizadores das drogas poderiam se escorar).
Nem mesmo o mais libertário dos
libertários pensa que não deveria haver limites para o consumo de substâncias
capazes de alterar a mente. Por exemplo, não acreditamos que crianças de quatro
anos devem consumir cocaína mesmo que elas queiram. Pais que permitissem que os
filhos saciassem tal desejo seriam rápida e corretamente privados do direito de
controle parental. (Que fique claro, entretanto, que não há nada tolo o
suficiente que não haja alguém querendo fazê-lo; conheço pais que, crentes na
capacidade nutritiva total das cenouras, alimentaram os filhos apenas com suco
de cenoura). A idade que um indivíduo se torna capaz de decidir por si mesmo é
precisa na lei (em certa medida), mas arbitrária na justificativa. Não há
momento preciso em que uma criança efetivamente se torna um adulto. Na
Inglaterra você pode servir o exército e praticar sexo consensual aos 16,
dirigir e beber aos 17, votar, comprar cigarros e casar sem consentimento dos
pais aos 18.
Tentar fazer com que a lei se
adeque a limites “naturais” sem qualquer grau de arbitrariedade que seja é o
que Mill e os legalizadores – isso soa como uma banda ruim da década de 1960, John Stuart Mill e os legalizadores –
tentam fazer. Contudo, a natureza não se organiza conforme a conveniência da
lei.
Aceitamos que, em muitas
circunstâncias, talvez na maior parte da vida das pessoas no mundo moderno elas
simplesmente não podem se intoxicar como bem entenderem. Não podemos dirigir
bêbados e muitos aceitariam que essa proibição é razoável mesmo se a maioria
dos bêbados chegarem a seus destinos sem ferir mais ninguém. Não esperamos até
que eles batam e matem alguém para considera-los culpados.
O que se aplica aos motoristas se
aplica a muitas outras situações. Um empregado não pode dizer que foi
injustamente demitido apenas porque não havia lei alguma contra o fato dele
estar bêbado em seu local de trabalho. Mães alcoólatras que são incapazes de
cuidar dos filhos podem ter a maternidade removida. Não esperamos que nossos
professores, médicos, pilotos, juízes e uma miríade de outras pessoas estejam
bêbados ou de fogo enquanto trabalham, ou então intoxicados por alguma outra
droga que não seja o álcool. Não esperamos que um cirurgião bêbado estrague uma
operação antes de proibi-lo de operar.
É verdade que algumas das
proibições são mais uma questão de tradição ou mores em vez de codificação legal, mas a lei não oferece proteção
contra aqueles que a infringem. Não existe direito de estar empregado e beber:
houve uma escolha entre as duas coisas. Se alguém consistentemente escolhe
beber, isso mais cedo ou mais tarde gerará custos, usualmente grandes custos, para
os outros. Qualquer um que tenha lidado com alcoólatras sabe que eles não são
os únicos a sofrer com seus hábitos.
A posição libertária com relação
às drogas seria mais convincente se os custos das escolhas daqueles que as
tomam recaísse apenas sobre eles próprios. Sabemos que, na prática, eles são
compartilhados com os outros. Nós (ou eu pelo menos) não deveríamos nos
importar em viver numa sociedade que, por exemplo, um viciado em heroína
encontrado inconsciente na rua fosse abandonado até a morte a menos que fosse
provado que ele pode ser submetido a tratamento porque iria pagá-lo depois ou,
de maneira alternativa, que ele poderia, posteriormente, ser posto em trabalho
forçado para pagar o que devesse conforme o tratamento dado. (A propósito,
Mill, numa das partes menos populares de Sobre
a Liberdade, diz que um pai que rejeita apoio ao filho tendo capacidade de
apoia-lo poderia legalmente ser posto sob trabalho forçado). Uma sociedade em
que os custos fossem determinados de maneira tão rigorosa seria tanto
intolerante quanto um pesadelo burocrático.
Um legalizador poderia, com
razão, dizer que a sociedade está satisfeita em repartir os custos, seja por
meio de seguros públicos ou seguros privados, desde a atividade voluntária de
alguns de seus membros. Entretanto, o que dizer dos desportistas, maiores
afligidos por ferimentos físicos na sociedade ocidental? A sociedade assume os
custos porque, acertada ou erroneamente, ela aprova, ou ao menos não desaprova,
o esporte. Ela não concordou, ao assumir os custos, com nenhuma atividade feita
por quaisquer de seus membros.
Ela concorda em repartir os
cursos como favor e de bom grado, por uma questão de sábio arbítrio e não de
acordo com algum axioma filosófico.
Em resumo, não há nenhum “princípio
simples”, do tipo que Mill anunciou, com certa eloquência que disfarçou seu
caráter vazio, que estabeleça como inerentemente errada a proibição que
cidadãos consumam quaisquer drogas que bem entenderem. Da mesma maneira, não há
nenhum princípio simples que determine quais drogas devem ser permitidas e
quais devem ser banidas.
Caso se torne correto permitir o
consumo de uma droga até então proibida, deve ser em alguma outra base que não
na “única finalidade pela qual a humanidade está autorizada a, individual ou
coletivamente, interferir na liberdade de ação um número qualquer dos seus, a
autoproteção”. Como disse Einstein, uma teoria deve ser o mais simples
possível, mas não mais simples que possível.
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