Artigo publicado originalmente em: BARRETO, Andre Assi. "A Beleza Como Valor Universal". Revista Filosofia Ciência&Vida, São Paulo, ano VII, n°73, p. 24-31, agosto, 2012.
O artigo estava hospedado no site da revista, mantido pelo UOL, mas não se encontra mais disponível, portanto, disponibilizo-o na integra aqui. Felicita-me ter ajudado a divulgar em 2012 o importante documentário "Por que a Beleza importa?", bem como Sir Roger Scruton e sua obra em geral, quando o filósofo britânico ainda estava em tímida ascensão em território brasileiro.
Segue o texto, com pequenas variações:
Muito
provavelmente todos já tiveram a experiência de, ao estar diante de obras de
movimentos como surrealismo, dadaísmo, cubismo etc. – que podemos reunir sob o
nome de “modernistas” –, ser preenchido por um sentimento de estranheza diante
dessas obras pois, na maior parte das vezes, não primam pelo tradicional e
universal critério da beleza; por
muitas vezes serem feias ou simplesmente não terem (aparentemente) sentido
algum. O próximo passo é rejeitar essas obras e não as considerar como arte.
Essa é a reação do apreciador dotado do mero senso comum, que os adeptos das
correntes estéticas “modernas” atribuem à incompreensão (pois o vulgo não teria
o aparato necessário para “compreender”) ou ao preconceito.
Contudo, há quem discorte. As coisas
não são assim de acordo com a argumentação do filósofo inglês e nosso
contemporâneo, Roger Scruton (1944), que dedica-se a este (entre outros)
problema, faz uma apologia da Beleza e clama por uma retomada dela; Scruton faz
isso especialmente em duas (de um universo de várias) de suas obras: o
documentário encomendado pela BBC Why Beauty Matters? (Por que a Beleza
importa? 2009) e no livro Beauty (Beleza, 2009, É
Realizações, 2013). Para sustentar sua posição, Scruton remete-se a inúmeros
filósofos, desde Platão, passando pelo Conde de
Shaftesbury e indo até Kant (que teve seu pensamento influenciado pelo
conde); também relembra que o objetivo da arte, seja a poesia, a música ou as
artes plásticas, para qualquer pessoa letrada que viveu entre os séculos XVII e
XIX, era a busca da Beleza (é importante notar essa lembrança feita por
Scruton, tendo em vista que ele é um conservador, pretende reestabelecer parte
da ordem desta época), um valor universal equivalente ao Bem e à Verdade
(reportando-se também, portanto, a Platão).
Um dos motes para exemplificar a
argumentação de Scruton é o clássico “Urinol”, do francês Marcel Duchamp (1887
– 1968), obra em que Duchamp assinou um urinol com um nome fictício e o enviou
para um museu para ser exposto como obra de arte. A partir do século XX,
assevera Scruton, a arte deixou de buscar a Beleza e passou a fazer um culto à feiura,
além de, por exemplo, ter por objetivo a originalidade a qualquer custo. Tal
tendência não se restringiu apenas às artes plásticas, mas também tomou conta
da arquitetura (Scruton também tem um excelente livro, este traduzido para o
português, sobre arquitetura, intitulado Estética da Arquitetura,
Edições 70, 2010), que se tornou estéril, o
que, na opinião de Scruton, explica a quantidade de prédios abandonados e
depredados na Grã-Bretanha e a popularidade de pequenos comércios com a
tradicional arquitetura vitoriana.
Dois cultos são responsáveis por
essa tendência de certas correntes de arte moderna, o culto à feiura, já
mencionado, cujo qual, ao virar às costas para a Beleza, faz com que a arte
perca sua principal realização, que é ajudar-nos a atribuir sentido à vida, nos
consolando das tristezas da vida ou, como para Platão, nos aproximar de Deus ou
ainda, para os filósofos iluministas, nos ajudar a galgar alguns degraus que
nos colocam para além das banalidades da vida cotidiana; e o culto à utilidade,
cujo qual, faz com que o valor das coisas resida estritamente em sua utilidade
prática; como Scruton menciona em seu documentário, Oscar Wilde já havia
afirmado que “toda arte é inútil” – o que fora reafirmado por, por exemplo,
Hannah Arendt. A Beleza (e a arte) não tem utilidade (no sentido pragmático
moderno), mas é justamente nesse fato que Scruton ressalta sua importância
enquanto valor universal, enraizada na natureza humana, escorando sua teoria em
Shaftesbury e Kant, a fruição da Beleza é uma atividade desinteressada e,
portanto, inútil. Mas isso desmerece a contemplação? Não, no mesmo sentido que
a amizade, o amor ou a mera atitude de ouvir uma música, igualmente sem
“utilidade prática”, não perdem seu valor.
O segredo da arte tradicional, que
servia de bálsamo para a vida, era sua valorização da criatividade, ao passo
que os movimento artísticos atuais primam pela exaltação do feio, do banal e
pela quebra de tabus morais, o que conduz primeiro à impressão e depois à óbvia
certeza que todos, Scruton e nós, chegamos: boa parte do que aí está, sendo considerado
obra de arte, não o é, algo não é transformado em arte, como num passe de
mágica, por reproduzir as frivolidades cotidianas (um copo sobre uma prateleira
de vidro – The Oak Tree, por Michael Craig, 1973 ou uma cama desarrumada
– My Bed, por Tracey Emin, 1998) e chamá-las de arte, como se esse
caráter fosse adquirido pelo decreto verbal do artista (para a tristeza dos
desconstrucionistas, que acreditam que a realidade é determinada pela
linguagem). Para que a arte retome sua trilha, é preciso que ela retorne sua
face para a Beleza novamente, tal como fora prescrito pelos filósofos e
praticado pelos artistas até então.
Adeus à Razão [traduzi artigo de Roger Scruton que trata do assunto]
A crítica de Scruton não se
limita à arte, mas repousa sobre um diagnóstico muito mais amplo, que também é
marca registrada da nossa época, chamada de pós-moderna: o total
abandono e desprezo pela Razão, que fora tão bem tida pelos filósofos
iluministas em especial e pelos modernos em geral. Deixam de existir os
critérios universais – sejam lógicos ou de gosto – todas as opiniões são
igualmente válidas, todas as culturas expressam formas de conhecimento
igualmente dignas de consideração e têm o mesmo valor epistêmico. Grosso
modo: trata-se do relativismo radical apregoado pela maior parte dos
filósofos pós-modernos, que também são alvo da crítica feroz de Scruton, os
mesmos Deleuze, Guattari, Foucault, Rorty et caterva. Isso significa que
Scruton não se limita à esfera propriamente filosófica
da questão (o que é Arte? Há critérios objetivos para defini-la e avalia-la?
etc), mas avança no sentido sociológico
do problema, isto é, tenta responder como chegamos a esse ponto, que tipo de
sociedade produz e celebra o tipo de arte atualmente produzida etc.
Certamente que, num mundo onde a
ciência é considerada o mito fundante da nossa era, líderes islâmicos e prêmios
Nobel são autoridades dignas de igual atenção tanto em matéria de física como
de ética, pois, afinal, não há choque de culturas algum, nem “nossa” cultura
está certa em permitir que homens e mulheres votem, tampouco a cultura islâmica
está errada em desfigurar a face das mulheres adúlteras com ácido, trata-se
apenas de culturas diferentes, dignas de igual respeito e consideração.
Qualquer coisa diferente disso não passa de “preconceito ocidentalista”,
argumenta Scruton, em algumas de suas obras e artigos.
Inserindo a discussão estética nesse
contexto mais amplo, fica claro que não há o menor espaço para a admissão de um
gosto estético “melhor” ou “pior”, só existem gostos estéticos (sempre
no plural): se o seu diz que uma lata contendo excrementos (Artist's Shit,
por Piero Manzoni, 1961) é arte, quem são todos os outros para dizer que não?
Isso porque não há verdadeiro ou falso, não há bem ou mal, certo ou errado, se
nenhum desses existe, por que razão haveria espaço para o bom ou o mal gosto
estético?
Trata-se de um apelo colossal a um
subjetivismo totalitário. Totalitário em que sentido? Nem mesmo os proponentes
do relativismo acreditam no que propõem, pois são os primeiros a censurar
aqueles que os reprovam, se todos os gostos estéticos são igualmente válidos,
porque bradam bravamente contra os que têm um gosto estético fundado na Beleza?
É muito simples: num contexto onde tudo é permitido, onde nada é proibido, é
essencial proibir e censurar o proibidor. É um totalitarismo que exclui tudo ao
seu redor, exceto os relativistas. E é exatamente o que é feito com Scruton, visto
que o filósofo é, muitas vezes, deixado à margem do estabilishment
acadêmico.
Mas quais as razões que levam
Scruton a rejeitar o subjetivismo estético? Como veremos a seguir, Scruton
considera que a Beleza é um, dentre alguns outros, de uma série de valores que
estão enraizados na natureza humana.
A Beleza
enquanto inerente à natureza humana
Talvez soe demodé falar
de natureza humana hoje em dia (ou não, se aceitamos os interessantes
argumentos de Steven Pinker em Tábula
Rasa), quer em termos filosóficos quer científicos, mas a argumentação de
Scruton segue esse caminho e indica que tanto a busca como a necessidade da Beleza
são marcas indeléveis da natureza humana. Como uma das características
essenciais da natureza humana é a racionalidade, é justamente na busca racional
pela Beleza – autorizada pela nossa natureza, que podemos fugir do subjetivismo
estético característico da nossa época: “nenhum gosto pode ser criticado, (...)
já que que criticar um gosto nada mais é que dar voz a outro” (Beauty, 2009, p. IX, tradução nossa). Na
contramão disso, Scruton argumenta no seu livro que os juízos estéticos têm fundamentação
racional e, portanto, objetiva. Tanto o subjetivismo estético, “todos os gostos
são equivalentes”, como o ceticismo, “não há verdade ou falsidade, erro ou
acerto em termos de estética” são peremptoriamente rejeitados por Scruton com
base na ideia que a Razão humana busca a Beleza.
A Beleza, embora não entre em
competição ou nem sempre necessariamente esteja lado-a- lado com a bondade,
nossa incansável busca por ela enraíza ambas em nós, faz com que essa busca nos
defina como humanos: “A Beleza está, portanto, firmemente enraizada no esquema
das coisas, tal como a Bondade. Ela fala a nós, tal como a virtude fala a nós,
trata-se de um preenchimento: não de coisas que desejamos, mas de coisas que
devemos, porque a natureza humana as exige” (idem, p. 147, tradução e grifo nossos).
Tal como as formas a prori
da razão, apresentadas por Kant na Estética
Transcendental, a Beleza é uma marca que nos define enquanto sujeitos
racionais, capazes de compreender o mundo. Tanto sua busca como sua
concretização nas mais variadas formas arte, são necessidades imprescindíveis a
todo ser humano. Abdicar da busca pela Beleza, tal como a arte moderna faz, é
abrir mão de uma herança cultural riquíssima, é fazer com que a vida seja mais
difícil de ser vivida; é torná-la mais cinza fazendo com que a principal função
da arte, que, como dissemos, é fornecer consolo para a vida diária, se perca.
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Retrato de Rosalba Peale, Remdbrandt |
REFERÊNCIAS
ABBAGNANO, N. Dicionário
de Filosofia. Martins Fontes: 2007.
DUTTON, D. A darwinian theory of beauty. TED Talks, 2010.
(Disponível em: http://www.ted.com/talks/lang/eng/denis_dutton_a_darwinian_theory_of_beauty.html)
SCRUTON, R. Beauty.
Oxford University Press: 2009.
. Estética da arquitectura.
Edições 70: 2010.
. The West and the rest. ISI Books: 2002.
. What ever happened to
reason? 1999. (Disponível em: http://www.city-journal.org/html/9_2_urbanities_what_ever.html.
Acessado em: 10/02/12)
. Why Beauty Matters.
BBC: 2009. (Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=bHw4MMEnmpc. Acessado
em: 10/02/12)
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